domingo, 26 de janeiro de 2014

Operários e outros trabalhadores: classes diferentes


por Paulo Ayres

Em toda sociedade antagônica (sociedade de classes) há duas classes fundamentais. Na sociedade burguesa, as duas classes fundamentais são a burguesia (classe capitalista) e o proletariado (classe operária). O que implica na seguinte questão: a maior parte da população mundial está fora destas duas classes (independente de qual seja a proporção de proletários e não proletários, o fato é que a maior fatia é a segunda mesmo; e capitalistas, então, é um número minúsculo). Isso sempre é colocado por muitos como um obstáculo para a visão que identifica o operário como o sujeito revolucionário. Afinal, como pode o projeto emancipador da humanidade estar contido num grupo que não abrange todas as massas trabalhadoras?

Diante disso, são conhecidas as análises, dentro do campo da esquerda e mesmo dentro da tradição marxista, que partem, de alguma forma, para a noção de "classe trabalhadora ampliada" e dissolvem o proletariado dentro desta massa heterogênea. Pois, como simplesmente "deixar de lado" tanta gente assim?

Em primeiro lugar, não é por ser ou não a maior fração da totalidade social que uma classe é portadora de identidade revolucionária (o grande exemplo é a própria burguesia, a classe revolucionária da transição do feudalismo para o capitalismo - burgueses, comparados com outras camadas da sociedade, sempre foram uns gatos-pingados). Em segundo lugar, colocar um sinal de igual entre assalariados que fazem o intercâmbio com a natureza (criando valores de uso e valor mercantil) e os que não transformam a natureza, inviabiliza aquilo que é fundamental estabelecer: a distinção entre o momento predominante e as outras esferas da reprodução social, a distinção entre a estrutura econômica e a superestrutura. São funções sociais diferentes. E em terceiro, isto não menospreza o papel político dos trabalhadores não proletários: a vitória ou não da perspectiva operária está ligada com a capacidade que ela tem (ou terá) de atração de indivíduos das camadas médias para se engajar no seu projeto emancipador (emancipa a si mesmo e, consequentemente, toda a humanidade).
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Como se pode notar, pela sua posição de base do edifício social, a chamada causa operária não é algo fechado e que diz respeito a uma "categoria profissional", como pode parecer numa leitura equivocada.

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Quem nunca se deixou seduzir e guiar pelo canto da sereia que sussurra um "a classe trabalhadora isso, a classe trabalhadora aquilo", tratando de todos os trabalhadores no geral? É tentador se deixar guiar por essa visão bipolar de classe entre o opressor-burguês e a massa-restante-oprimida. Se o território das análises e estratégias se situa na superfície política, tal concepção não está de todo equivocada: a maior parte das massas trabalhadoras estão, mais ou menos, num mesmo barco, sofrendo os ditames do metabolismo do capital, que tem na classe dominante sua personificação. Contudo, na esfera ontológica, colocar todos os trabalhadores como equivalentes dentro do funcionamento do sistema é matar fundamentos que erguem a concepção histórico-materialista e a distingue de elucubrações idealistas.

A produção da vida social não resume a vida social, mas é sua base de sustentação. A obviedade, nesse caso, não é vulgar, mas intransponível como degrau. O trabalho é a categoria fundante do mundo dos homens (e, por favor, que fique claro que o trabalho que aqui se refere é o intercâmbio entre ser social e a natureza que cria os meios de produção e de subsistência). Uma atividade ontologicamente inovadora que remete para além de si mesmo e se estabelece como um elo entre natureza e sociedade. Assim sendo, o trabalho primitivo funda a sociedade primitiva, o trabalho escravo funda a sociedade escravista, o trabalho do servo funda a sociedade feudal e, por fim, o trabalho operário funda a sociedade capitalista.

Na Antiguidade, por exemplo, havia soldados e burocratas assalariados e nem por isso eles eram parte da mesma classe que os escravos - os produtores diretos do modo de produção escravista. O assalariamento é uma categoria que atravessa diferentes manifestações da sociedade de classes. O operariado da era industrial é um agente típico da consolidação do capitalismo maduro. O operariado é o proletariado, uma classe trabalhadora singular e fundamental dentro de algo mais abrangente e heterogêneo, que podemos chamar de conjunto dos trabalhadores.

Além de produzir o conteúdo material da riqueza social, o operário produz o próprio capital (a partir da transformação da natureza e, não por um processo de segunda ordem, que apenas valoriza um capital individual, como ocorre no trabalho produtivo não-proletário). O operariado é o trabalho vivo, descrito por Marx, que cobre seu valor de custo e produz um valor excedente que vai alimentando o capital social total. O combustível deste capital social total.

Não é mera questão de capricho categorial insistir na diferenciação de operários e não-operários, é, pelo contrário, não cair nas tentações teóricas (que podem ter inclinações pós-modernistas, neokantianas, entre outras), que, no fundo mesmo, acabam por minar, de uma forma ou de outra, o historicismo concreto. Por outro lado, é preciso insistir, que, assim como uma andorinha só não faz verão, a classe operária sozinha não realiza a Revolução. Os demais segmentos do conjunto dos trabalhadores (sejam eles assalariados ou não, como o campesinato - este último, por sinal, é produtor direto também) são necessários no processo revolucionário que pode - ou não - colocar a perspectiva operária como vitoriosa de um longo caminho de transformação radical da humanidade rumo à sociedade emancipada.

Operários e demais trabalhadores, como os outros assalariados (estes vendem a força de trabalho, mas são não-produtores) e os camponeses (estes são produtores não-assalariados), possuem funções sociais distintas dentro do metabolismo de reprodução da sociedade. Possuem até aproximações em alguns aspectos, como se pode notar em cada caso (assalariamento de um lado e transformação da natureza de outro), mas cumprem papéis ontologicamente distintos. O que não interfere quando politicamente estas forças trabalhadoras se unem em prol da mesma causa revolucionária.
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