sexta-feira, 16 de julho de 2021

Acertos e erros do materialismo metafísico na análise do homem

 
por Bogdan Suchodolski

I. A posição social do materialismo metafísico
 
Na filosofia burguesa, manifestou-se a teoria idealista do homem principalmente nas especulações mais diversas acerca da “essência” do homem. Já no século XVIII começou a se desenvolver uma segunda corrente que se opunha só aparentemente ao mencionado tipo de idealismo e o combatia publicamente. Essa corrente tentou formar os indivíduos humanos concretos segundo postulados que se desdobram do conhecimento da “natureza humana”. Circunscrevia-se à vida do homem mesmo e não queria admitir nenhuma instância alheia a ele. Essa ação contra o “idealismo ilusório e extraordinário” e para a proteção dos direitos “do homem de carne e osso” se dividiu em muitas direções diversas. Porém, todas elas tinham determinadas fontes comuns.
 
Durante o largo tempo de luta que a burguesia levou a cabo contra o feudalismo, as concepções “ideais” serviram de arma eficaz para a superação das relações e concepções predominantes. Mediante o apelo ao direito natural, que valia como direito de vida perfeito, eterno e intangível, puderam atacar intensivamente os direitos feudais ainda sobreviventes. A sociedade do contrato social e da sociedade ideal possibilitava de atacar, de modo valente e ameaçador, a sociedade feudal existente e seus donos absolutos. Com a concepção da “natureza humana” se podia criticar vigorosamente a primazia da Igreja no terreno do ensino. No entanto, à medida em que a burguesia alcançou a vitória e sobre as ruínas do feudalismo instalava — às vezes em aliança com ele — uma nova ordem, na qual se elevava à categoria de classe dominante, esse modo de pensar começou a resultar perigoso em algumas questões sociais. Os chamados “ideais” superavam em muitos casos as relações dominantes que correspondiam exatamente aos interesses da burguesia e não permitiam nenhuma mudança mais. Neste período de restauração se delineou já muito claramente essa crítica exercida pela reação feudal frente ao idealismo. A essas críticas se associam cada vez mais, sob o impulso das aspirações revolucionárias das massas, também os representantes da burguesia.

Se as diversas concepções acerca das imutáveis leis da natureza e da essência imutável do homem, até este momento renderam bons serviços à luta pela realização das reivindicações da burguesia, na consolidação da ordem burguesa se converteram em supérfluas ou mesmo prejudiciais. Bastava se referir à vida tal como essa se apresenta em si mesma e, precisamente do feito de sua existência, reunir a certeza de que é correta. O chamado ao “idealismo” se converte sob essas circunstâncias em um instrumento da reação feudal, que não podia concordar com o triunfo da burguesia, ou no slogan do socialismo utópico da democracia insatisfeita em suas reivindicações.

No período de restauração se pode reconhecer claramente essa dualidade que veio motivada pela insatisfação com as relações materiais de vida existentes. A insatisfação das “direitas” se manifesta na romântica reacionária que constrói imagens ideais da vida e se vincula com a ideologia religiosa medieval; a insatisfação de “esquerda”, ao contrário, anuncia, na crítica utópica à ordem predominante, no idealismo utópico, as relações sociais de outro futuro indeterminado. Entre ambos polos se movem os que tem conseguido a vitória e para os que a realidade existente rege como intangível. Tal postura adota o liberalismo, que luta em duas frentes: combate, por um lado, a reação que pretende voltar a acorrentar os homens com as velhas correntes, e, por outro lado, os democratas que exigem uma transformação mais radical das relações dominantes. Sua confiança metafísica nos “melhores de todo o mundo” se exterioriza no liberalismo ao proclamar a intangibilidade da sociedade burguesa que se desenvolve. Nessa direção vão também outras correntes ideológicas. É sabido que a filosofia hegeliana floresce nesse espírito oportunista. Uma tendência semelhante possui também as esperanças vinculadas ao surgimento da sociologia como ciência. Pretendem terminar com as diversas especulações e mostrar ao pensamento humano e às normas morais um apoio sólido no ser social.

As transformações na filosofia refletem de um modo fundamental os conflitos ideológicos que se manifestam pela crítica da metafísica tradicional “da essência”. Principalmente a filosofia do empirismo prevenia os homens contra a aspiração de projetar concepções apriorísticas acerca de sua essência. Concebe a alma do homem como uma tabula rasa na qual se impressionavam todas suas experiências. Essa concepção se converteu no ponto de partida de um novo modo de considerar o homem e comportou muitas importantes consequências para a interpretação da vida do homem tanto espiritual como moral. No século XVIII se realizaram numerosas tentativas de conceber o homem desse modo, no qual não se requeria nenhum conteúdo ideal que prefigurava internamente à essência do homem. O conceito, cunhado por La Mettrie, “Homem-máquina”, queria expressar que o homem se forma por completo no transcurso de sua vida, que é “construído” pela natureza. A famosa estátua de Condillac, que se converte em homem exclusivamente sob a influência do mundo circundante, expressa o mesmo pensamento.

Nos fins do século XVIII começaram a se delinear junto às concepções empíricas, as históricas. Essas concepções queriam encontrar resposta à questão do que é o homem, não em análises do ambiente, mas nas análises da história. A exposição da história mutável do homem devia ser o melhor argumento contra as tradicionais concepções que determinam de uma modo apriorístico a natureza do homem. O desenvolvimento da ciência histórica e da sociologia nos séculos XIX e XX apoiaram fundamentalmente esse ponto de vista. Desse modo, a redução do homem e sua cultura às condições de existência históricas se converteu em um programa de investigação reconhecido quase por todos.

Nos fins do século XIX e princípios do XX, aponta-se uma corrente orientada contra as concepções tradicionais. Filosofia da vida, pragmatismo e fenomenologia tentam conceber, apesar de muitas contradições, os homens por si próprios, pela sua atividade livre, suas vivências e experiências.
 
Essas tendências foram prosseguidas pelo existencialismo, que se apresenta a si mesmo, com certa razão, como a herança de aspirações anteriores cujo fim era superar a metafísica da essência, empreender a consideração filosófica do homem sobre a base de sua vida concreta e considerar a metafísica mesma não como instância da vida humana, mas como uma expressão dessa vida.

Se se quer caracterizar essas distintas correntes que surgem em oposição à concepção tradicional, há que fazer referência às suas contradições imanentes. Não se trata de um campo unificado, mas que mais bem se combatem tendências totalmente opostas. Por uma parte, trata-se de tendências que identificam a existência do homem com todo o campo de possibilidades de evolução; por outra parte, são tendências que exigem a oposição às relações materiais de vida existentes que não se adequam às experiências da existência humana. Essa oposição se manifesta, por sua vez, em dupla forma: em parte como fuga utópico-romântica da realidade desagradável, em parte como organização da atuação concreta para a transformação da vida.

Esses antagonismos se agudizaram progressivamente nos séculos XIX e XX. Nos anos quarenta do século passado [XIX] surgiu uma situação ideológica especial na qual o pensamento sobre o homem se encontrou, pela primeira vez, na encruzilhada. A partir daqui resultava possível extrair um balanço do passado e, ao mesmo tempo, conhecer a direção do desenvolvimento futuro.
 
A luta da burguesia levada a cabo de modo desigual em diversos países contra o feudalismo, o advento tardio da revolução burguesa em alguns países e o perigo ameaçador de que podia se converter numa revolução popular, e a influência ainda forte da ideologia feudal paralelamente no amadurecimento da consciência proletária complicavam mais ainda a situação. Certamente, a crítica à metafísica idealista burguesa se realizava desde o ponto de partida à direita, mas a crítica de esquerda tomou logo a iniciativa. Para essa, o apelo à vida concreta dos homens significava uma libertação definitiva das cadeias da Igreja e da religião, a legalização das aspirações laicas e racionalistas, o reconhecimento das necessidades materiais dos homens e a destruição tanto da superestrutura, que submete a vida livre dos homens, como das cadeias da moral feudal e do aparelho estatal feudal. Nessa tendência se desenvolviam os jovens hegelianos, especialmente Feuerbach.

Entretanto, precisamente nesse momento se levantou um problema filosófico fundamental de cuja solução dependia nesse período decisivo a direção do desenvolvimento posterior da ideologia “do homem”.

O problema se formulava nos seguintes termos: se queremos rechaçar a concepção metafísico-idealista do homem, que considera-o como corporização concreta da “essência ideal”, e compreender o homem por razão de sua vida verdadeiramente própria, como podemos no aspecto filosófico precavermos de um naturalismo flagrante, e no aspecto social do oportunismo, que vê as relações materiais da vida como “humanas” no mais autêntico sentido da palavra?

Isso constituía um problema central, tal como hoje podemos vê-lo, uma vez que conhecemos o desenvolvimento de séculos da concepção idealista. A falta de uma solução correta desse problema, o ataque à concepção idealista metafísica do homem devia conduzir às concepções existencialistas que se manifestam em Stirner e, posteriormente, em Nietzsche. Sem uma solução correta desse problema não resultava possível nem uma diferenciação do homem dos animais — que durante muito tempo foi empreendida pelas teorias idealistas — nem um ataque às teorias naturalistas, que remetem a vida social a fatores naturais e consideram a luta de classes como uma forma da luta geral biológica pela existência. Sem uma solução correta desse problema não era possível, em definitivo, no rechaço do idealismo metafísico vigente, criar posições a partir das quais fora possível uma crítica para a transformação da vida, posições desde as que puderam compreender que a realidade, apesar de ser a base de nossos conceitos de homem, deve ser submetida à “uma crítica das teorias e, na prática, à transformação revolucionária”.

O materialismo metafísico realizou a primeira tentativa de uma solução a essas questões no século XVIII, que foi prosseguido por Feuerbach. Ainda que Marx valorize justamente o valor histórico desses esforços, também os criticou muito duramente.
 
II. Crítica do materialismo sensualista

Na determinação do ponto de partida materialista, Marx indica frequentemente o significado progressista do primitivo materialismo metafísico, assim como do mecanicista e do sensualista. Ao mesmo tempo, expõe as diferenças específicas que os distinguem da nova concepção dialética do materialismo que constitui a arma filosófica do proletariado. Essa distinção é especialmente importante para a compreensão das conclusões pedagógicas que se seguem do ponto de partida de Marx. Por isso queremos começar tratando essa questão.

Em A sagrada família, Marx formula sua concepção sobre o caráter, o desenvolvimento e o significado do materialismo francês. Sublinha o significado progressista desse materialismo que empreende uma luta contra a metafísica de Descartes, Spinoza e Leibniz, assim como contra a religião. Indica o dualismo da física e metafísica cartesianas e o papel do sensualismo de Locke na evolução do materialismo francês do século XVIII. Descobre as raízes sociais das correntes espirituais e as motivações sociais da queda da metafísica tradicional no período do Iluminismo. Presta sua atenção a Bacon, Hobbes, Locke, Bayle e, mais adiante, a Helvétius, Condillac, La Mettrie e indica os vínculos entre o materialismo inglês e o francês, assim como sua tendência crítica a rechaçar as autoridades até então vigentes. Sublinha também as esperanças otimistas desse materialismo a respeito de uma transformação do mundo mediante o ensino.

Marx faz uma crítica radical e aniquiladora desse materialismo do período do Iluminismo, embora destaque o valor progressista dos métodos de investigação experimentais e empíricos, que se opõem às especulações racionalistas e ao fideísmo, e indica o valor progressista de uma investigação do homem como uma pequena parte material do grande mundo da natureza. Uma formulação sintética e madura dessa crítica proporcionam as Thesen über Feuerbach, mas a primeira elaboração ampla se encontra no primeiro tratado publicado depois da morte de Marx com o título de Ökonomisch-philosophische Manuskripte do ano 1844.

Nessa obra, Marx ataca a parcialidade do materialismo sensualista, seus erros, ilusões e ficções abstratas que se encontram contrapostas à existência concreta do homem e às suas reais relações polifacéticas com a natureza.

O argumento principal é o desmascaramento do caráter antissocial, metafísico, do materialismo sensualista. Esse materialismo defende a ideia de que o homem adquire seu conhecimento a partir dos sentidos, que o põem em comunicação com as coisas e que o proporcionam uma impressão da qual surgem os conceitos. No entanto, o materialismo sensualista não considera que a relação do homem com o objeto é muito mais complicada. Não se trata, em absoluto, de uma ponte secreta que mediante os sentidos ponha em comunicação os dois mundos alheios e mutuamente opostos entre si — o mundo humano e o mundo das coisas —. Trata-se mais de uma relação de mútuo contato e de mútuo condicionamento, de uma relação de criação recíproca e de transformação.
 
Marx escreve “Eu só posso praticamente me comportar frente às coisas de um modo humano quando as coisas se comportam frente ao homem humanamente”[1]. As coisas com que nos enfrentamos são só aparentemente uma realidade natural independente do homem. Em geral, são ou obras humanas, ou transformações humanas dos elementos da natureza. Nesse processo de intercâmbio ativo se configuram o mundo humano das coisas e o homem mesmo, assim como seus instrumentos sensíveis. “O olho — escreve Marx — se converteu em olho humano do mesmo modo que seu objeto, que procede do homem para os homens, converteu-se num objeto social, humano. A faculdade do olho humano e o conteúdo humano da percepção configuram, no transcurso desse processo de criação histórica, o mundo humano mediante os homens. Algo semelhante sucede com os demais sentidos. Não são, de modo algum, uma bagagem natural que o une com os objetos independentes dele. Desenvolvem-se mediante a atividade social do homem que cria a realidade e a transforma”[2].

O homem não se encontra, pois, subordinado aos objetos do mundo real ao percebê-los como objetos humanos, como objetos sociais. Os sentidos humanos o ensinam a realidade desse mundo objetivo, mas, por sua vez, são formados por esse mundo. Tomam esses objetos por úteis ou inúteis, belos ou odiosos, por verdadeiros enquanto atuam sobre nós e são transformados por nós. A estreita e polifacética dependência dos sentidos e dos objetos do mundo humano pode se demonstrar em todos os terrenos. Assim, por exemplo, no aspecto da música. “A música desperta — escreve Marx — o sentido musical do homem; assim, para o ouvido não musical a mais bela música não tem nenhum sentido, não é (nenhum) objeto, porque meu objeto só pode ser a confirmação das minhas forças essenciais”[3]. Algo semelhante sucede com a visão, o tato, o olfato. Pode-se, pois, dizer que “os sentidos de homem social são outros que os de homem não social” e, por isso, pode-se compreender que “somente mediante a riqueza desdobrada objetivamente da essência humana se forma e se produz, em parte, a riqueza da sensibilidade subjetiva humana, um ouvido musical, um olho para a beleza da forma; em resumo, os sentidos só se fazem assim sentidos capazes dos gozos humanos que se afirmam como forças essenciais humanas[4].

Considerações semelhantes se podem fazer — segundo Marx — a respeito de todos os demais elementos da vida física. Não apenas os cinco sentidos tradicionais, mas também os desejos humanos, as aspirações de todo tipo são fenômenos que se produzem na vida social no transcurso da estreita e polifacética relação do homem com a realidade humana. “Cada uma de suas relações humanas com o mundo; visão, audição, olfato, paladar, tato, pensar, contemplar, sentir, querer, atividade, amor, ou seja, todos os órgãos imediatamente comuns pela forma, são, em seu comportamento objetivo ou em seu comportamento com o objeto, a apropriação do mesmo, a apropriação da realidade humana; seu comportamento com o objeto é a manifestação da realidade humana;... atividade humana e sofrimento humano, pois o sofrimento, em um sentido humano, é um gozo que o homem tem de si”[5].

O sentido dessas considerações se opõe à concepção metafísica do sensualismo, que concebe o homem como uma essência que está confrontada ao mundo das coisas e que desenvolve seus sentidos graças à influência dessas coisas. Coloca em dúvida o modo dogmático de opor o sujeito ao objeto e o modo de contemplação estática do homem como uma natureza eternamente dotada do mesmo sistema sensitivo. E transcendendo esse tema conduz aos métodos de investigação sócio-históricos para a análise dos dotes fisiológicos e físicos do homem e, desse modo, abre perspectivas totalmente novas.

“Vê-se — escreve Marx — como a história da indústria e a existência objetiva realizada da indústria constituem o livro aberto das forças humanas essenciais, a psicologia humana presente de modo sensível, que até a atualidade não se concebeu em sua relação com a essência do homem, mas sempre e somente numa relação de tipo externo de proveito, porque — movendo-se no marco da alienação — só se sabia conceber a existência geral humana do homem, a religião ou a história, em sua abstrata essência geral, como política, arte, literatura, etc., como realidade das forças humanas essenciais e como atos do gênero humano”. Segundo Marx, constitui-se um grave erro que até o presente se tenha considerado a história da técnica, do trabalho e da produção desde o unilateral ponto de partida do proveito que tem para o homem, sem apreciar seu significado para a formação da essência humana, para o enriquecimento de seu atuar fisiológico e físico, para sua educação. “Na indústria material, usual... nos encontramos sob a forma de objetos sensíveis, estranhos, úteis, sob a forma da alienação; as forças objetivadas essenciais do homem. Uma psicologia para a qual esse livro está fechado, ou seja, a parte concretamente mais atual e acessível da história, não pode chegar a ser uma ciência completa e real. O que há de pensar de uma ciência que prescinde dessa grande parte do trabalho humano e não percebe sua própria unilateralidade, desde o momento em que tão ampla riqueza do atuar humano não lhe diz nada, porém mais do que o que se poderia resumir numa palavra: ʽnecessidadeʼ, ʽnecessidade vulgarʼ?”[6].

Esse ponto de vista sócio-histórico mostra a ficção da concepção naturalista do homem e do mundo em que vive. O mundo da natureza não constitui nenhum mundo independente da vida do homem. Tem tão pouco sentido opor a natureza ao homem como duas realidades alheias e independentes, como separar as ciências da natureza das sociais como algo radicalmente distinto. “O homem transforma a natureza e nessa atividade transforma a si mesmo. Produz-se a si mesmo e a seu mundo natural humano. A natureza que chega a ser e se afirma na história humana — o ato de nascimento da sociedade humana — é a verdadeira natureza do homem, porque a natureza tal como a faz a indústria, ainda que seja de uma forma alienada, é a verdadeira natureza antropológica[7].
 
Neste sentido, pode-se dizer que a produção e a indústria são o elo histórico e real que une a natureza e a ciência com o homem, e que desse modo as ciências já não resultam alheias ao homem e se convertem propriamente na base das teorias dos homens, de modo semelhante ao modo como a produção se converteu na base da vida dos homens. Pode-se também dizer que no futuro existirá somente uma ciência humana, porque as ciências da natureza se convertem cada vez mais em ciência da natureza transformada pelo homem; e as ciências humanísticas, em ciência do homem, que se configura graças ao trabalho que produz o “mundo humano natural”.
 
A história mundial é “a produção do homem mediante o trabalho humano; ou seja, o chegar a ser da natureza para os homens”. O homem se converteu assim no ponto central da existência da natureza transformada, tal como também a natureza transformada se converteu no ponto central da existência do homem. Esses recíprocos laços não podem se desfazer, e por ele todos as tentativas de uma contraposição metafísica e estática do “homem” e a “natureza” constituem uma abstração deficiente que consiste na separação do conteúdo real, concreto que se desenvolve historicamente, da existência concreta, real dos homens e da natureza[8].

A crítica de Marx se opõe, pois, às teses básicas do materialismo naturalista, segundo o qual as coisas como objetos e o homem como sujeito se enfrentam de modo alheio, mutuamente independente. Os sentidos — diz esse materialismo — nos indicam de modo adequado à sua natureza fisiológica a existência das coisas, mas essa informação não influencia nem as coisas mesmas nem a transformação do homem. As coisas permanecem tal como são, e o homem, como essência que está dotada pela natureza somente com receptores completamente determinados, é sempre o que já estava determinado num princípio a ser. Certamente, o materialismo sensualista se opõe às ideias inatas que deveriam predeterminar o desenvolvimento do indivíduo; entretanto, ao sublinhar o papel do mundo circundante e das impressões adquiridas, conserva propriamente o elemento estático das concepções anteriores. Mediante a vinculação sensível com a realidade, o homem não haveria se desenvolvido nem se transformado: como numa placa fotográfica se desenha exclusivamente em seu espírito certa imagem da realidade, sempre a mesma, realidade invariável e independente. O homem se pode, pois, conceber como uma máquina, como um autômato, que funciona mecanicamente segundo impulsos recebidos. Concebeu-lhe, pois, cada vez de um modo mais naturalista, do mesmo modo que se conceitua os animais, que levam a mesma vida desde séculos em um ambiente determinado, mas independente deles.

Marx indica de modo convincente que o homem e a natureza se encontram numa específica dependência recíproca de interação e transformação. O homem como sujeito existe já no objeto, na natureza, enquanto essa é para os homens verdadeiramente objeto. O que os sentidos reconhecem já é de certo modo transformado pela atividade social. E o que é transformado mediante essa atividade configura os sentidos humanos como instrumentos do conhecimento do mundo e das coisas. Portanto, segundo Marx, o problema da objetividade do conhecimento sensível, defendido pelos materialistas sensualistas e duramente criticado por seus oponentes, deve se solucionar de outro modo. Se os sentidos nos ensinam a existência dos objetos, se nos transmitem suas propriedades de um modo fiel, se talvez somente se refletem em nosso conhecimento parcialmente tais propriedades e incluso se talvez são exclusivamente um produto do nosso sistema sensitivo, tudo isso — como Marx diz — não é mais que um problema  “puramente escolástico” enquanto se concebe separadamente da prática. Não são os sentidos, mas a prática o que constitui a vinculação fundamental do homem com a natureza. Trata-se, pois, aqui de uma dependência social e histórica, variável e em constante progresso, ativa e polifacética. A sinalização da realidade mediante os sentidos expressa uma ação que transforma essa realidade e àqueles que a transformam. Precisamente uma vida dessa natureza é o oposto à vida dos animais, e constitui propriamente a vida humana.
 
A crítica de Marx ao materialismo sensualista não se milita apenas às ideias metafísicas gerais. Essas se encontram estreitamente vinculadas com a análise das situações sociais nas quais surgem convicções imaginárias e teorias que se desdobram da limitação e desorientação do homem. Uma indicação a essas análises se encontra contida no ponto de partida anteriormente mencionado. Se o problema da consciência humana não se pode compreender com as categorias naturalistas e fisiológicas, deve-se considerar de um modo social, as análises puramente filosóficas não bastam para a crítica do sensualismo.
 
Os sentidos do homem se formam e se desenvolvem, em união com os objetos de sua atividade social, somente em sentidos verdadeiramente humanos quando se cumprem as premissas para isso, graças às quais todos os objetos do homem podem se conceber como objetos do mundo humano. “Para o homem que morre de fome não existe a forma humana de alimento, mas somente sua existência abstrata como comida; do mesmo modo, poderia se encontrar na forma mais primitiva e não poderia dizer em que se distingue essa atividade alimentícia das feras. O homem que se encontra cheio de preocupações e necessidades não tem sentido algum para o mais belo espetáculo;... assim, pois, a objetivação da essência humana, tanto no aspecto teórico como prático, é necessário tanto para converter o sentido do homem em humano como para criar, para toda a riqueza da essência humana e natural, sentidos correspondentes humanos[9].

O cumprimento dessas condições mediante as quais o homem pode participar na realidade que lhe circunda como realidade humana, não depende do destino do indivíduo, mas da estrutura objetiva social na qual o indivíduo vive. Essa estrutura pode ser de tal tipo que facilite a compreensão do ambiente real como uma obra social dos homens, ou ser de tal tipo que o impeça e force o homem a considerá-la realidade alheia e independente, na qual a participação do homem não resulta, em absoluto, constitutiva. Qual é esse fator decisivo do que depende a limitação e destruição das relações humanas com o mundo? Esse fator é a propriedade privada.

A propriedade privada, ao criar a sociedade de classes e causar que os objetos produzidos socialmente se tenham convertido em objetos da posse de homens que pertencem às classes dominantes, “a propriedade privada — escreve Marx — nos tem convertido em tão tolos e unilaterais que um objeto não é nosso mais do que se o temos, se existe como capital para nós ou é possuído imediatamente por nós, comido, bebido, levado sobre nosso corpo, habitado por nós, etc., em resumo, é utilizado[10]. Em uma ordem social em que a vida humana é somente possível mediante a posse da propriedade, em que os que não possuem propriedade alguma são excluídos da sociedade e da cultura, desenvolve-se o desejo de posse gradualmente até se converter no conteúdo principal de vivências do homem que configura sua relação com o mundo. O homem deixa de parecer na realidade que lhe rodeia o produto da atividade social dos homens e começa a valorar essa realidade exclusivamente como arena de luta pela posse, como terreno da exploração segundo a força da posse. Esse modo de considerar limita e empobrece, no entanto, os homens. “Em lugar de todos os sentidos físicos e espirituais tem aparecido, pois, a simples alienação de todos esses sentidos, os sentido de ter. A essência humana deve se reduzir a essa absoluta pobreza para poder engendrar a partir de si mesma sua riqueza interna. A supressão da propriedade privada constitui, por conseguinte, a emancipação total de todos os sentidos e propriedades humanas”[11]. Isso significa que mediante a supressão da propriedade privada se superará o modo falso e prejudicial de considerar a realidade como objeto da posse individual e se produzirá novamente o verdadeiro e natural que se desdobra do conhecimento de que a realidade se configura mediante o trabalho social dos homens. As coisas nos aparecem, então, como nossas próprias obras, como nós mesmos em forma objetivada, como fruto da atividade social. Nossa consideração compreenderá, então, o objeto como “coisa humana” de modo imediato e como questão de amor para com ela e não como cálculo, não como objeto de aspiração egoísta de posse. Nesse sentido, Marx diz que “os sentidos se convertem imediatamente, na prática, em teóricos”: não são sob essas circunstâncias força alguma para uma tomada de contato com as coisas para possuí-las, mas uma força na qual se reconhecem nas coisas os produtos sociais, humanos; uma força que se exerce e se desenvolve no processo de reconhecimento de si mesmo. Olhos e ouvido do homem evoluem — como já se disse — como órgãos de ver e ouvir humanos ao aprender a ver cores e formas e ouvir sons, que pertencem ao mundo humano e têm um sentido humano.

A derrocada da ordem baseada na propriedade privada, tarefa que é a própria do comunismo, cria, pois, a base para um ensino puramente humano. Sob essas novas condições o homem compreenderá que sua atividade constitui a criação do mundo humano, ou seja, que é o desenvolvimento paralelo a si mesmo e não a simples produção de bens para a posse própria ou alheia. Compreenderá “como sob a hipótese da propriedade privada suprimida positivamente o homem produz ao homem, a si mesmo e os demais homens; como o objeto que é o produto da atividade imediata da individualidade constitui, ao mesmo tempo, sua própria existência para os demais homens, sua existência e a existência desses últimos para ele”[12]. Compreenderá, pois, que a produção em todos seus terrenos não constitui nenhum mundo de coisas ou produtos alheios ao homem, mas um processo social da manifestação dos homens na atividade produtiva e de seu desenvolvimento individual mediante essa atividade. Compreenderá que a propriedade privada limitava a compreensão consciente desse caráter do homem e a falseava lhe impulsionando à criação de bens para a possessão individual, e que nessa atividade só pode se reconhecer precisamente de um modo falso a essência da vida humana.

Com a liberação da atividade produtiva dos homens dessas travas e limitações e com o devir consciente de seu caráter social, que consiste no devir dos homens mediante à criação do mundo objetivo da vida, o mundo humano, realiza-se nas relações de vida comunistas uma total transformação das relações dos homens com suas próprias obras. Os homens reconhecerão nesse mundo supostamente alheio, no qual somente deviam servir à apropriação individual egoísta, a própria obra social e participarão nele livres de cobiça.

Sob essas circunstâncias os homens não se apoderarão dos objetos particulares como objetos da imediata exploração egoísta e da propriedade privada, mas como obras humanas, como produtos sociais, como expressão da essência e da vida humanas. Desse modo, o homem se desenvolverá, enriquecerá e se verá lançado a outras atividades. Convertera-se cada vez mais em humano porque se apropriará em medida cada vez maior do conteúdo humano do mundo criado socialmente. Toda a riqueza do patrimônio histórico da humanidade, que durante tanto tempo tem sido esquecido em seu caráter de obra humana, convertera-se na escola do homem.

A ordem comunista é, pois, uma ordem que outorga à produção e consumo dos homens um sentido autenticamente humano, polifacético, consciente e social, porque supera as desfigurações, ilusões e limitações criadas pela propriedade privada.

III. Conclusões pedagógicas da crítica do materialismo sensualista

A análise de Marx do materialismo do período do Iluminismo tem uma grande importância para a pedagogia. Nas correntes materialistas dessa época se formularam certamente teses importantes da pedagogia burguesa que se opunham à pedagogia feudal. Foram teses que influíram ao longo de todo o século XIX como correntes principais de teoria pedagógica. Também, no século XX, o pensamento pedagógico burguês se vinculou a elas. O caráter progressista dessa ideias material-sensualistas, que adquiriram sob as condições sociais do século XVIII, foi interpretado abusivamente em muitas ocasiões como uma legitimação de um suposto progressismo e cientificismo das correntes do século XX que se basearam nelas.

Por essa razão, uma correta e exata concepção acerca do valor e erros da pedagogia sensualista é não só um problema de juízo histórico, mas também de contribuição a levantar a moderna problemática pedagógica e a elucidar as diversas problemáticas falsas e as tentativas de solução. Essa tarefa a empreende diretamente a crítica marxista do sensualismo.

Em primeiro lugar, indica o valor histórico e o caráter progressista da pedagogia sensualista em oposição à pedagogia das “ideias inatas”. A pedagogia “das ideias inatas” considerava independente o devir do homem das relações sociais, do ambiente e do ensino. Era a pedagogia do “desenvolvimento interno autônomo”, a pedagogia do racionalismo metafísico, a pedagogia da teoria escolástica. Em contraposição a ela, a pedagogia fundamentada na filosofia empirista e sensualista dirige a atenção do educador às condições reais e concretas de vida, a realidade, a experiência e a atividade. Na opinião de que o espírito humano se forma graças às impressões adquiridas, destaca-se o papel do ambiente e da educação na formação do homem. Abre possibilidades otimistas para uma melhor educação dos homens e para a elevação de seu nível espiritual e moral mediante o ensino conscientemente orientado a um fim.

Em A sagrada família, Marx sublinha o caráter progressista dessas teorias e sua estreita vinculação com o socialismo.

Depois de expor a atividade de Condillac, Helvétius e Holbach, Marx extrai uma conclusão geral acerca do caráter e consequências desse materialismo ao escrever: “Não faz falta ter uma grande perspicácia para se dar conta do necessário entroncamento que guardam com o socialismo e o comunismo as doutrinas materialistas sobre a bondade originária e a igual capacidade intelectiva dos homens, sobre a força todo-poderosa da experiência, do hábito, da educação, da influência das circunstâncias externas sobre o homem, a alta importância da indústria, a legitimidade do gozo, etc. Se o homem forma todos seus conhecimentos, suas sensações, etc., à base do mundo dos sentidos e da experiência dentro desse mundo, do que se trata é, por conseguinte, de organizar o mundo empírico de tal modo que o homem experimente e assimile nele o verdadeiramente humano, que experimente a si mesmo enquanto homem. Se o interesse bem entendido é o princípio de toda moral, o que importa é que o interesse privado do homem coincida como o interesse humano. Se o homem não goza de liberdade em sentido materialista, isso é, se é livre, não pela força negativa de poder evitar isto ou aquilo, mas pelo poder positivo de poder fazer valer sua verdadeira individualidade, não deverão se castigar os crimes do indivíduo, mas destruir as raízes antissociais do crime e dar a cada qual a margem social necessária para exteriorizar de um modo essencial sua vida. Se o homem é formado pelas circunstâncias, será necessário formar as circunstâncias humanamente. Se o homem é social por natureza, desenvolverá a sua verdadeira natureza no seio de uma sociedade e somente ali, razão pela qual devemos medir o poder de sua natureza não pelo poder do indivíduo concreto, mas pela poder da sociedade”[13].

Mas por essa valoração positiva não devemos esquecer os defeitos e erros fundamentais da pedagogia sensualista, da pedagogia do período do Iluminismo e da pedagogia dos últimos tempos, que se vincula de modo imediato com essa tradição. Na crítica do materialismo sensualista, Marx indica diretamente as origens dos erros que conduziram a que essa pedagogia não cumprira as esperanças progressistas nela depositadas, e que não transpassara em sua aproximação ao socialismo os limites determinados que estavam de acordo com os interesses da burguesia e que frequentemente — em especial, nas épocas posteriores ao seu surgimento — realizara, ao contrário, as esperanças de um ponto de partida nitidamente reacionário.

A pedagogia sensualista tem, antes de tudo, uma falsa concepção do homem e de sua relação com a realidade externa. Considera o homem como uma essência que está dotada pela natureza de determinados sentidos já perfeitos, que lhe informam acerca do mundo imutável e independente e, desse modo, configuram seu espírito e sua vontade. Tal como temos exposto, Marx põe em tela de juízo esse naturalismo metafísico. Indica a vinculação “da fisiologia” do homem com sua atividade social a qual transforma o mundo natural em um “mundo humano”, e esse mundo humano se desenvolve mediante a luta de classes que suprime a propriedade privada.

No lugar dessas concepções metafísicas, a-históricas e associais, Marx formula as teses que destacam a estreita dependência recíproca do homem com o mundo em que vive. Trata-se de teses que sublinham a ativa dependência prática que se constitui no processo de desenvolvimento social, que se manifesta objetivamente como riqueza crescente do “mundo humano” e se mostra subjetivamente como transformação paralela, ao mesmo tempo mutuamente dependente, e como enriquecimento da essência humana.

A crítica de Marx se dirige contra as teorias educativas sensualistas que consideram o labor educativo como “educação” dos sentidos compreendidos de um modo naturalista. Marx via bem claras as consequências pedagógicas de seu ponto de partida, ainda que não se estendeu sobre essa questão. Nos Ökonomische philosphischen Manuskripten encontramos uma frase que por sua sensatez e profundidade resulta convincente: “A educação do cinco sentidos é um trabalho de todas as gerações humanas passadas”. Essa frase resumia a crítica exposta do sensualismo e formula, ao mesmo tempo, a tese capital pedagógica com ajuda da qual se pode rechaçar o programa de ensino e educação fundamentado no sensualismo.

Desde esse ponto de partida há que criticar especialmente nesse programa os seguintes pontos. Primeiro, a concepção da consciência como faculdade passiva que registra os dados sensíveis e os agrupa. Em Locke, o sensualismo se manifesta numa forma ainda limitada; em La Mettrie e Condillac, entretanto, converte-se numa tese formulada de modo radical.

La Mettrie, ao analisar a consciência, compara-a com a “Lanterna mágica que reverte os objetos formados nos olhos”. Defende a opinião de que “nossas ideias surgem do mesmo modo que as descrições botânicas se fazem consciente no jardineiro ao ver as plantas”. Segundo essas concepções, a formação da consciência consiste no enriquecimento da mesma com impressões, no desenvolvimento das capacidades de observação e no estímulo da junção e comparação. No entanto, esse labor educativo deve ter em conta que “o poder de julgar, a razão, a memória não atuam em absoluto de modo autônomo”, e que a natureza não há dotado a todos do mesmo modo ao outorgar ao indivíduo particular um “cérebro pior ou melhor organizado”. Uma vez tomada consciência dessa limitações, o labor do professor se orienta unilateralmente ao estabelecimento de uma metódica de exercício para os sentidos. Ao mesmo tempo, o professor deverá diferenciar os exercícios segundo os supostos “dotes naturais”.

O tratado de Condillac mais importante acerca da pedagogia sensualista, Cours d’études pour l'instruction du prince de Parme contém — apesar do seu caráter progressista — elementos claros dessas limitações que reaparecem com a agudização da luta de classes. Em fins do século XIX e princípios do XX, as concepções de Lay, por uma parte, e de María Montessori, por outra, representam a continuação das opiniões sensualistas que Marx atacou em suas origens.

A segunda restrição afeta o modo como se concebe a atividade humana. A pedagogia sensualista não reconhece a atividade social e histórica dos homens, desconhece sua participação na transformação das próprias condições de vida dos homens; entretanto, determina a atividade humana em seu próprio campo em certo modo: é a atividade de contemplação e de comparação de percepções. Em Condillac encontramos conselhos bem precisos de tipo didático que se cingem ao desenvolvimento de uma tal atividade da consciência. As consignas da formação de “associações” e “reflexões” são conservadas — como todas as demais consignas da pedagogia do Iluminismo — pela burguesia dos séculos XIX e XX, porque possibilitam a vinculação do ensino e do trabalho de um modo seguro para a sociedade. Especialmente em algumas correntes da escola de trabalho se concebeu a atividade da criança como exercício dos sentidos mediante o exercício da rotina manual. Esses tipos de exercícios deviam representar, ao mesmo tempo, um exercício da consciência como órgão de associação e reflexão que opera o material sensível.

Dessas limitações se desdobra que a crítica de Marx se opõe à concepção sensualista da contemplação. A contemplação não pode — como se desdobra das ideias de Marx — compreender-se como uma “faculdade visual propriamente fisiológica”. Deve se entender como um conhecimento de objetos concretos mediante o qual o sentido social desses objetos se evidencia como produtos do trabalho humano. A contemplação se encontra vinculada ao conceito do conteúdo social dos objetos que pertencem ao mundo humano surgido historicamente.

A terceira limitação se refere à concepção que superestima a importância da infância para o desenvolvimento do homem. Uma concepção desse tipo se desdobra facilmente da teoria sensualista. Já Locke via claro isso ao escrever a introdução a Pensamentos acerca do ensino: “As impressões pequenas ou quase imperceptíveis em nossa tenra infância têm muitas consequências importantes: e aqui sucede como as fontes de certos rios, em que uma leve pressão da mão conduz a canais que lhe dão um curso completamente distinto; mediante a direção imperceptível que lhe dão em sua mesma origem, recebem diversas direções e vão a lugares distantes”[14]. Os sucessores de Locke sublinharam ainda mais o papel do ambiente e da educação na mais tenra infância, na qual as primeiras impressões formam a consciência da criança. Essa teoria sensualista se encontra, junto com a psicanálise, que também concede uma importância decisiva à infância, ainda que por razões distintas, na base das teses fundamentais da pedagogia burguesa moderna. Essa pedagogia se opõe a reconhecer a possibilidade e necessidade de transformar os homens adultos e jovens, mediante as relações materiais, e o ensino, mediante o trabalho e a atividade revolucionária.

Os mencionados traços essenciais da pedagogia sensualista, que adquiriram um caráter reacionário cada vez mais acusado sob as condições sociais dos séculos XIX e XX, foram rebatidos justamente por Marx já no momento de seu nascimento, quanto ainda tinham um significado progressista. A crítica de Marx rebate, ao destruir as teses fundamentais do sensualismo, a interpretação pedagógica da formação do homem mediante a formação dos seus sentidos e não aceita o papel supostamente decisivo das impressões e experiências na tenra infância. Rechaça, também, a consideração mecanicista estreita da atividade do homem. No entanto, a crítica se aprofunda mais ainda.

A crítica que Marx faz do sensualismo não se limitava somente à teoria do conhecimento e à metafísica. Combate também os erros e falsidades sociais que eram próprios do sensualismo, e o conteúdo social da pedagogia sensualista.

A pedagogia sensualista desempenhou um importante papel na superação da pedagogia metafísico-racionalista das ideias inatas. Ao indicar o processo educativo do homem que se leva a cabo no ambiente, abre novas possibilidades ao problemas do ensino. Entretanto, essa pedagogia não oferece nenhuma garantia frente às teorias burguesas perigosas e falsas de uma interpretação utópica ou reacionária do ensino.

Já em Helvétius podemos observar uma vacilação entre a convicção utópica, “o ensino tudo pode”, e a opinião reacionária de que o ensino confirma somente aquilo que a ordem social existente e as circunstanciais condições de vida fazem dos homens.

No prefácio à sua obra Acerca dos homens, de suas capacidades intelectuais e sua educação, Helvétius escreve: “Se eu demonstrara que o homem de fato não é mais que um produto de sua educação, haveria descoberto, sem dúvida, uma grande verdade para as nações. Essas saberiam que têm em suas mãos o instrumento de sua grandeza e de sua felicidade, e que para chegar a ser feliz e poderoso se trata somente de aperfeiçoar a ciência pedagógica.” A tese da onipotência do ensino deve conduzir a ideias utópicas, que prometem a transformação social e uma educação das jovens gerações. Precisamente tal é o sentido como o problema foi apresentado frequentemente pelo socialismo utópico.

Por outra parte, no entanto, o sublinhar a função decisiva da educação do ambiente permitia interpretações conservadoras. E, efetivamente, assim há sucedido muitas vezes. O mesmo Helvétius utilizou em sua obra uma série de formulações desse tipo. Quando escreve que os “verdadeiros professores da criança são as coisas que lhe rodeiam, pois a elas deve todos seus pensamentos”; quando sublinha o papel da casualidade, ao caracterizar a vida humana como um “amplo entretenimento de casualidades”; quando indica que o verdadeiro educador da juventude “é a forma de governo sob a qual se vive esta juventude, e os costumes que esta forma de governo comporta”; quando afirma que a “educação faz de nós o que somos”, e nós somos o que a sociedade faz de nós, faz afirmações que resultam adequadas como ponto de partida no capitalismo para os princípios de um ensino social que se concebe como adequação do homem ao ambiente, que de todos modos lhe forma, como adequação às necessidades da classe social dominante.

Quanto mais se agudizou a luta de classes entre a burguesia e o proletariado, mais claramente se patentearam essas vacilações. E se fez cada vez mais evidente que toda a concepção educativa do materialismo sensualista continha determinados erros básicos que se desdobravam de seu condicionamento de classe e resultavam que não pudera se converter no fundamento de uma pedagogia futura. Marx indicou claramente o caráter desses erros. Em Die Thesen über Feuerbach escreve: “O defeito principal de todo o materialismo existente até a atualidade (incuindo o de Feuerbach) é que o objeto, a realidade, a sensibilidade só se concebe sob a forma de objeto da contemplação; e não, ao contrário, como atividade humana sensível, como prática; não subjetivamente”[15].

A argumentação decisiva que se expressa em forma lapidar em Die Thesen über Feuerbach se dirige contra o materialismo sensualista, porque concebe a realidade natural e social de uma modo estático e independente da atividade humana. O materialismo sensualista ignora o papel da atividade social que transforma a realidade, e se converte, por isso, numa teoria falsa do conhecimento e numa teoria nociva da educação. Não é capaz de perceber as contradições existentes na sociedade, que a luta de classes expressa, no significado da atividade revolucionária, mediante a qual é possível a libertação de utopias e da reação. Não possibilita tampouco solucionar o problema básico da “educação do educador” e há de crer, ou que “os novos educadores” não surgem em parte alguma, ou que a sociedade existente, ou seja, a classe dominante, os formam.

A crítica de Marx ataca aqui, pois, tanto as teorias utópicas “da transformação social mediante a educação” como também as teorias oportunistas “da educação como função do ambiente”. Marx indica o papel da atividade prática e, antes de tudo, revolucionária e a considera como uma atividade que transforma a realidade social do homem e, em certo sentido, a cria. Por isso exige o rechaço radical do materialismo sensualista. Somente o materialismo histórico e dialético pode refletir a realidade de um modo verdadeiramente fiel e organizar a atividade humana de modo correto, e, com isso, também a educação do homem.

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Notas:
[0] Tradução para o português: Paulo Ayres.
[1] Marx-Engels, Kleine ökonomische Schriften, Berlim, 1955, p. 132.
[2] Ibidem.
[3] Ibidem, p. 133 y s.
[4] Ibidem, p. 134.
[5] Ibidem, p. 132.
[6] Ibidem, p. 135 y s.
[7] Ibidem, p. 136.
[8] Ibidem, p. 139.
[9] Ibidem, p. 134.
[10] Ibidem, p. 132.
[11] Ibidem.
[12] Ibidem, p. 129.
[13] Marx-Engels, La sagrada familia, México, Grijalbo, 1962, p. 197.
[14] Lockes Gedanken über enziehung (Pensamentos de Locke sobre ensino), Langensalza, 1910, p. 84.
[15] Marx-Engels, Werke, Berlim, 1958, vol. 3, p. 5.
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SUCHODOLSKI, B. Teoria marxista de la educación. Tradução de Maria Rosa Borras. México: Grijalbo, 1966, pp. 223-240.
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