terça-feira, 31 de agosto de 2021

O processo da autocracia burguesa (1964-85)

 
por José Paulo Netto
 
O exame menos epidérmico da ditadura brasileira revela-a como um processo, o ciclo da autocracia burguesa, com momentos nitidamente diferenciados e diferenciáveis no plano empírico e analítico[1]. Em tal processo contém-se a constituição e a crise da autocracia e do seu regime político.
 
Nesta seção, procuraremos realizar uma sinopse — que recolhe muitos dos passos analíticos consagrados na documentação já produzida sobre a ditadura mas que, ao mesmo tempo, se afasta de muitas considerações correntes — que dê conta apenas dos aspectos substantivos do processo em questão.

Entendemos que o ciclo autocrático burguês recobre três lustros — de abril de 1964 a março de 1979; do golpe à posse do general Figueiredo. Assinalar seu início com a empreitada que depôs o governo constitucional de Goulart não desperta polêmica, mas é seguro que se levantem dúvidas pertinentes acerca do marco estabelecido com a sagração presidencial de João Figueiredo. Julgamos que é possível dirimi-las minimamente se esclarecermos, de início, que não consideramos que o fim do ciclo autocrático burguês significa a desarticulação do Estado por ele criado e, logo, nem a substituição do regime próprio à ditadura; em poucas palavras: o fim do ciclo autocrático burguês não corresponde, em nossa ótica, à emergência de um regime político democrático. O que o governo Figueiredo demarcou, claramente — e de modo inédito, no bojo dos instantes finais do ciclo autocrático —, foi a incapacidade de a ditadura reproduzir-se como tal: em face do acúmulo de forças da resistência democrática e da ampla vitalização do movimento popular (devida, decisivamente, ao reingresso aberto da classe operária urbana na cena política), a já estreita base de sustentação da ditadura experimentou um rápido processo de erosão que a compeliu a empreender negociações a partir de uma posição política defensiva. Que esta situação não tenha desembocado numa crise do Estado instaurado pela ditadura, permitindo-lhe, durante o final do governo Geisel e durante o governo Figueiredo, estabelecer o terreno e os limites da negociação — eis uma das particularidades da transição brasileira da ditadura a um pacto e a um regime políticos que, neste momento, sob vigência da Constituição de 1988, já têm definidos os seus parâmetros e arcabouço. É no governo Figueiredo que o projeto de autorreforma do regime ditatorial, a que nos referiremos adiante, a sua mais ambiciosa proposta de institucionalização, fracassa. Nele, a resultante do confronto entre a estratégia aberturista do regime e as aspirações e tendências à democracia, que operavam no seio da sociedade brasileira, é a impossibilidade de o regime impor as suas regras. É apenas neste sentido que tomamos o início do governo Figueiredo como o marco derradeiro do ciclo autocrático burguês[2].

Ao longo desses três lustros, a autocracia evoluiu diferencialmente. Parece-nos legítimo apanhar esta evolução segundo três momentos distintos: o que vai de abril de 1964 a dezembro de 1968 (cobrindo o governo Castelo Branco e parte do governo Costa e Silva); de dezembro de 1968 a 1974 (envolvendo basicamente o fim do governo Costa e Silva, o intermezzo da Junta Militar e todo o governo Médici) e o período Geisel (1974-1979). É desnecessário apontar para a natureza aproximativa e indicativa destes marcos cronográficos; quanto à continuidade de que se nutrem as diferenciações que conformam estes momentos, ela será sumariada adiante.

O primeiro momento (1964-1968) é singularizado pela inépcia da ditadura em legitimar-se politicamente, em articular uma ampla base social de apoio que sustentasse as suas iniciativas. Após a vaga repressiva que desencadeou na sequência imediata da deposição de Goulart — vaga que incidiu sobre aqueles atores que poderiam protagonizar confrontos diretos com o pacto contrarrevolucionário, vale dizer: o movimento operário e camponês, as lideranças democráticas mais comprometidas com as forças populares e de esquerda, dentro e fora do aparelho estatal[3] —, após esta vaga repressiva, a coalizão vencedora esforçou-se para manter um consenso ativo entre seus parceiros e neutralizar as forças que lhe eram hostis. Para tanto, no plano político apresentou-se como responsável por um período preciso de excepcionalidade (v.g., a limitação temporal explícita dos seus instrumentos de arbítrio), não feriu o andamento formal da vida legislativa e se comprometeu com o calendário eleitoral anteriormente definido. Seus esforços, porém, mostraram-se inúteis: em pouco tempo as fraturas roeram a unidade dos parceiros do pacto contrarrevolucionário e as forças antiditatoriais  buscaram mecanismos de rearticulação[4].

Para a erosão da unidade do pacto contrarrevolucionário concorreram vetores nitidamente políticos, entre os quais, com peso não desprezível, os projetos particulares de lideranças que jogaram no golpe com o fito de realizá-los mais facilmente. Todavia, o dinamismo essencial da erosão radicava em que a orientação econômico-financeira do novo governo colidia frontalmente com a composição heteróclita do pacto contrarrevolucionário: as medidas “racionalizadoras”, quer em face da desaceleração do crescimento (que vinha desde 1962), quer em face de suas prospecções já lançando as bases para o “modelo econômico” que haveria de consolidar-se no momento seguinte, rachavam a unidade conseguida às vésperas de abril — aqui, a implementação do Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG/1964-1966) é canônica. No campo dos trabalhadores, as iniciativas governamentais não ganhavam setores significativos — ao contrário, a liquidação da estabilidade no emprego e uma política salarial depressiva (com perdas muito visíveis a partir de 1967) só faziam alargar o fosso original entre o governo e a massa trabalhadora. Por seu turno, parte considerável da pequena burguesia urbana, afetada retardatariamente pela desaceleração do crescimento e muito penalizada neste período, descola-se rapidamente do pacto contrarrevolucionário. No lapso indicado, nos dois processos eleitorais por que passou o país (o segundo, em 1966, já com a imposição do bipartidarismo), o governo não colheu evidências de que seus suportes sociais conservavam posições seguras.
 
As dificuldades do primeiro governo dos golpistas são grandes em todas as frentes, mas apresentam-se óbvias particularmente em dois planos. O primeiro deles é o do sistema político-institucional: o arcabouço herdado do período pré-64, mesmo violentado, embaraçava a efetivação não só do que suas políticas exigiam como, ainda, impunha-lhes um ritmo lento, flagrantemente negativo à afirmação da nova ordem. Escusa observar que as oposições aproveitavam-se de tudo o que poderia obstar os movimentos governamentais, explorando precisamente o que, naquele arcabouço, lhes favorecia. O segundo refere-se à coesão da força tutelar do novo poder, a corporação armada[5]: o processo conspirativo e a ascensão a posições públicas de poder e prestígio, comprometidas descaradamente com interesses econômico-financeiros explícitos, derruíram sensivelmente a sua unidade orgânica e funcional; no seu bojo, começaram a emergir “partidos” — e daí a incapacidade do primeiro titular golpista da Presidência para controlar a escolha do seu sucessor.

Esta herdaria de Castelo Branco toda a acumulação de estrangulamentos políticos e sociais, sem outra perspectiva concreta e factível que a de legitimar-se, ante ponderáveis estratos da população, com a retomada do crescimento econômico, embora expressasse esforços para obter alguma legitimação política. Esta perspectiva foi eclipsada pela dinâmica política: capitalizando o difuso descontentamento popular, a oposição saiu da defensiva e, mesmo privada de instrumentos de poder, começou a romper o cerco com que os mecanismos do arbítrio procuraram insulá-la — é o tempo da Frente Ampla, sinal inequívoco da ruptura do pacto contrarrevolucionário. A aceleração do processo político foi potenciada por dois fenômenos: o movimento operário e sindical retomou ações significativas e o movimento estudantil, expressão privilegiada da pequena burguesia urbana, assumiu ruidosamente a frente da contestação à nova ordem. O quadro mudava; a oposição conquistava as ruas. E esta mudança operava alterações nos dois campos — no do governo e no da oposição. Nesta, adquiria densidade uma avaliação eufórica da situação e, por fora da política institucional, condensavam-se polos (básico, mas não exclusivamente, de extração pequeno-burguesa) que concebiam a liquidação do arbítrio como ultrapassagem da dominação burguesa[6]. Naquele, encorpava-se a tendência a precipitar a instauração profunda da nova ordem pela via da militarização do Estado e da sociedade.

1968 é o ano que decide do curso do processo. Conjugando a ação nos espaços legais cedidos pelo governo com a intervenção aberta na área de penumbra entre a legalidade e a ilegalidade, as oposições inviabilizaram a intenção governamental de legitimar-se politicamente. Fica patente que, mantidas em vigência as estruturas jurídico-políticas que reservavam canais para o dissenso, mesmo desprovido de chances imediatas de rebater nos centros decisórios do Estado, a projeção “modernizadora”, em curso, entrará em ponto morto (assim é que nem proposta constitucional de Costa e Silva/Pedro Aleixo mostra-se funcional, naquela conjuntura, a tal projeção). O nó de impasses é rompido com o Ato Institucional n.º 5 (AI-5): abre-se o genuíno momento da autocracia burguesa[7].
 
O que fora, até então, uma ditadura reacionária, que conservava um discurso coalhado de alusões à democracia e uma prática política no bojo da qual ainda cabiam algumas mediações de corte democrático-parlamentar, converte-se num regime político de nítidas características fascistas[8]. No bloco sociopolítico dominante, conquista preeminência indiscutível o componente mais reacionário do pacto contrarrevolucionário, aquele que corporifica os interesses do grande capital monopolista imperialista e nativo. O processo de concentração e centralização capitalistas, com a desobstrução do campo realizado pelo PAEG e, em muito menos medida, pelo Plano Estratégico de Desenvolvimento (PED, do governo Costa e Silva), acelera-se velozmente — é que a estrutura do Estado, então, é inteiramente redimensionada e refuncionalizada para servir e induzir à concentração e à centralização. Se, entre 1964 e 1968, a ditadura assumiu o Estado, ela agora cria as suas estruturas estatais. Com efeito, é nesse momento do ciclo autocrático burguês que a ditadura ajusta estruturalmente o Estado de que antes se apossara para a funcionalidade econômica e política do projeto “modernizador”. Esta adequação integra o aparato dos monopólios ao aparato estatal.
 
Na escala exata em que o Estado e o regime já não se confrontam apenas com o campo democrático e popular, mas com amplos setores burgueses, na defesa, que implica penalizações parciais de segmentos capitalistas, da projeção histórico-societária do grande capital, a tutela militar estende-se e amplia-se, generaliza-se por todos os pores do Estado e penetra os interstícios da sociedade. A repressão à oposição e ao dissenso, mesmo prosseguindo em linha seletiva, torna-se sistemática e se converte, operacionalizada de forma policial-militar (com o reconhecido aporte de meios empresariais e a assessoria, inicialmente, de personalidades afetas a organismos estrangeiros), em prática organizada e planificada oficialmente: o terrorismo de Estado é a contraface política da “racionalização”, da “modernização conservadora” conduzida ao clímax na economia e visível na consolidação do “modelo”.

A requisição da legitimação é deslocada no plano da representação de interesses sociais, do plano da representação e da expressão políticas — onde, naturalmente, não teria viabilidade —, para o da eficácia do regime e do governo na promoção do desenvolvimento econômico: é o tempo do crescimento acelerado, batizado então de “milagre brasileiro” e posto como organizador de um consenso passivo.

Deste momento do ciclo autocrático burguês, há dois fenômenos a reter. De uma parte, a construção do Estado a serviço dos monopólios não implicou apenas a liquidação de práticas e instituições do pré-64 (pense-se, por exemplo, na supressão da Federação pela sistemática tributária, no papel dos legislativos etc.) que obstaculizavam ou reduziam a velocidade da “modernização conservadora”; implicou, especialmente, tanto o crescimento quantitativo de aparatos funcionais ao “modelo econômico” que já tematizamos (e às suas consequências sociopolíticas, sublinhe-se) quanto uma alteração qualitativa no seu rebatimento na ordem estritamente econômica: conferiu-lhe um enorme poder de definição macroscópica de políticas sociais abrangentes e um idêntico poder para efetivamente implementá-las[9]. De outra parte, a sistemática do terrorismo de Estado conduziu as forças democráticas a uma residual política de resistência e compeliu o movimento democrático e popular a uma atividade que não pode ser denotada senão pelo termo molecular.

Dadas estas condições, é flagrante que neste momento da sua evolução o ciclo autocrático burguês tensionou ao limite o circuito Estado-sociedade. Esta evidência emerge, prenunciando desdobramentos incontroláveis, quando a única variável que legitimava o Estado e o regime apresenta indicações inequívocas de reversão — quando, já em 1973, o “milagre” começa a esgotar-se. Na crise do “milagre", que a partir daí só faria aprofundar-se, inscrevem-se as determinações que, pela mediação da resistência democrática e pela ação do movimento popular, desembocarão na crise do regime autocrático burguês[10].
 
Esta mediação torna possível — num período em que as lutas classistas dos trabalhadores, nomeadamente do proletariado industrial, são constrangidas a formas elementares (Frederico, 1979) — conferir ao que a ditadura militar-fascista transformara em ritual um sentido sentido específico: o processo eleitoral adquire uma significação peculiar, um caráter plebiscitário em relação ao regime. No terreno mesmo da manifestação esvaziada e ritualizada pela ditadura, a massa do povo que tem acesso ao voto converte-o — a despeito de anos de terror que instauram o circuito fechado do medo e do absenteísmo — em instrumento eficaz de mobilização e luta (e, de fato, passando por cima de todas as sugestões do “voto nulo”, então próprias ao radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista). O processo eleitoral de 1974, com este significado, aliás surpreendente para boa parte de seus protagonistas e analistas, derruiu qualquer pretensão de legitimação do autocratismo burguês em sua configuração militar-fascista, explicitando que seu futuro imediato tendia a comprometer-se numa rede crescente de fenômenos de instabilidade[11].
 
Se 1968 marcou uma inflexão para cima do ciclo autocrático burguês, 1974 marcou-a para baixo: abre o momento derradeiro da ditadura, centralizado pelo aprofundamento da crise do “milagre” e por uma particular estratégia de sobrevivência implementada pelo alto núcleo militar do regime — estratégia expressa claramente por Geisel e sua equipe, autodenominada “processo de distensão” e que, avançando no governo Figueiredo, constituirá o projeto de autorreforma com que o Estado forjado pela ditadura procurará transcendê-la[12]. Tal estratégia, reduzida a seus termos mais simples, visava à recomposição de um bloco sociopolítico para assegurar a institucionalização duradoura do sistema de relações econômico-sociais e políticas estruturado a serviço dos monopólios (especialmente a estruturação plasmada no Estado). Seu objetivo axial, assentado numa “iniciativa da liberalização controlada e limitada”, consistia em “instaurar no país a superestrutura política que considera adequada: uma combinação estável de formas parlamentares limitadas com mecanismos decisórios ditatoriais” (PCB, 1984, p. 25-26).

Na implementação desta estratégia, o Estado ditatorial precisava operar diretamente em dois planos e indiretamente num terceiro. Diretamente, por um lado, necessitava enquadrar rigidamente todo o vasto aparelho policial-militar repressivo, impedindo o seu acionamento por segmentos corporativos localizados — em suma, era-lhe indispensável suspender o arco da autonomia das facções do “partido militar”, subordiná-lo inteiramente a um comando único e inquestionável. Por outro lado, era-lhe igualmente necessário aniquilar todas as forças político-organizativas que, na contestação radical do seu projeto, poderiam introduzir elementos de problematização de longo curso na sua intenção institucionalizante[13]. Não restam dúvidas de que a ação estatal, neste plano da intervenção direta, obteve êxito — mesmo que de alcance diverso (mais sucesso no primeiro que no segundo caso).

Existia, porém, a requisição de uma intervenção direta: havia que conquistar — e, para tanto, a pura coerção era inepta — para o projeto de autorreforma segmentos ponderáveis da sociedade, contando ou não com a mediação das representações políticas. E foi precisamente neste plano que o projeto de autorreforma encontrou os maiores obstáculos: se, de uma parte, poucos daqueles segmentos visados se reconheciam nas representações políticas sancionadas pelo Estado, de outra o ritmo com que se aprofundava a crise econômica (recorde-se que o II Plano Nacional de Desenvolvimento acabou inviabilizado) promovia realinhamentos políticos de importância, inclusive em suas hostes, potenciados por um fato novo: a reinserção da classe operária, a partir das greves do ABC paulista, na cena política. A implicação foi substantiva: imediatamente, a reemergência do proletariado urbano, como tal, como ator demandante independente que feria a legalidade posta pelo Estado, deflagrou uma radicalização na oposição democrática — que, então e aliás, inicia um giro explícito de aproximação à classe operária. Concorrentemente, o movimento democrático — que só parcialmente se reconhecia e se expressava na oposição democrática, sendo muito mais amplo e capilar que ela — se precipita: salta da ação que chamamos molecular, extravasa os seus espaços de origem e permeia amplamente algumas das agências da sociedade civil que, por esta saturação, ganham uma funcionalidade e uma ressonância inéditas.

Eis por que, em seu último momento evolutivo, a autocracia burguesa é obrigada a combinar concessões e gestos tendentes à negociação com medidas repressivas. E nenhuma das duas modalidades, ou mesmo a combinação de ambas, conduziu o seu projeto de autorreforma ao êxito — a institucionalização geiselista foi de curto prazo, esboroando-se no governo Figueiredo. Neste, a autocracia prossegue em seus intentos de autorreforma, sob a versão aberturista, mas a crise econômica que leva o país ao fundo do poço acentua os realinhamentos políticos — e já então, por força da ação do movimento operário e popular, que passa à ofensiva, deslocam-se do bloco de sustentação do regime até setores monopolistas. Culmina a crise da autocracia burguesa e a dominação burguesa é compelida a transitar por outros condutos — numa história que escapa ao quadro de interesse do nosso estudo.

Entretanto, há dois componentes fundamentais que percorrem o processo global da ditadura e que, se não forem destacados, não permitem nem clarificar o fio condutor que une visceralmente os distintos momentos da autocracia burguesa nem compreender o seu estágio crítico.

O primeiro diz respeito ao vetor que coesiona a tutela militar na conformação do Estado ditatorial. Em todo o ciclo autocrático burguês, o referencial político-ideológico da doutrina de segurança nacional foi o parâmetro ideal recorrente. A sua amplitude e labilidade — Moreira Alves (1987, p. 27), analisando um dos seus principais formuladores brasileiros, chega a caracterizá-la como uma Weltanschauung — presidiu toda a movimentação operada em torno e a partir do Estado. Num primeiro instante do processo, foi ela que orientou estrategicamente a conquista do Estado; em seguida, conformou um novo Estado e dirigiu-o. Tanto no curso ascendente da autocracia burguesa, até 1973-1974, quando no limbo da sua crise, a expressão doutrinária e prática da segurança nacional permeou a intervenção do bloco que assumiu o poder. Não se trata, esta doutrina, de uma referência específica de um ou outro momento do ciclo autocrático burguês — antes, foi a sua representação ideal constante e privilegiada, fornecendo a ligadura orgânica quer para a repressão desenfreada, quer para a “distensão lenta, segura e gradual”. Concretizando-se em formas precisas de ordenamento da economia e do poder político, impregnando as instituições estatais, a doutrina se inscreve na lógica imanente do Estado criado pela, para e na autocracia burguesa. A implicação é cristalina: este Estado é incompatível com um processo substantivo de democratização[14].

O segundo componente a ser retido é que, também ao largo de todo o ciclo autocrático burguês, no campo da oposição democrática a hegemonia nunca escapou das mãos de correntes burguesas. Ao longo do processo ditatorial, o fenômeno relevante a ser observado é que, na sua contracorrente, não se engendraram núcleos democráticos sólidos capazes de emergir, na crise da ditadura, com propostas social e politicamente viáveis aptas a transcender os quadros da ordem burguesa. Não acidentalmente, um dos máximos horizontes de um avançado segmento democrático, com peso ponderável na oposição, tem sido o de uma democratização habilitada a controlar o Estado (o mesmo Estado que caracterizamos na seção 1.2)[15].

Não é por acaso, pois, que a crise da ditadura, alongando-se por mais de uma década, configura um processo de transição que parece singular e atípico: deu lugar a uma situação política democrática, nos primeiros anos da década de oitenta, que vem se aprofundando, mas que coexiste com um aparato estatal inteiramente direcionado para um sentido incompatível com a sua manutenção, ampliação e consolidação. O impasse de fundo aí contido — uma clara defasagem entre o Estado e o regime político — seguramente não pode perdurar por muito tempo.

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Notas:
[1] Praticamente todos os investigadores reconhecem a existência factual destes momentos e a maioria deles concede, procedentemente, destaque às mudanças ocorridas em 1968 e sinalizadas pelo Ato Institucional n.º (AI-5); ao que eu saiba, o estudioso que se dedicou a pesquisar mais detidamente as nuanças do processo da ditadura foi Moreira Alves (1987).
[2] Algumas poucas questões referentes à transição deflagrada com o fim do ciclo autocrático burguês serão tacitamente tratadas no seguimento.
[3] Componente ainda indevidamente avaliado, nesta rodada repressiva, foi a evicção de elementos democráticos nas corporações armadas. Mesmo que se possa problematizar o potencial democrático e nacional que certas análises reivindicam para as corporações militares no pré-64 (e nesta reivindicação coincidem autores tão distintos como Sodré, 1965 e Pedrosa, 1966), está claro que a depuração que nelas promoveram os golpistas foi extremamente significativa. Sobre o papel das corporações militares, cf. Oliveira (1976) e o ensaio de Dreifuss e Dulci, in Sorj e Tavares de Almeida, orgs. (1984); para uma panorâmica do período mais recente, cf. Stepan (1986).
[4] No andamento desta seção, centra-nos-emos nos processos, sem a referência a fatos, que podem ser verificados nas fontes bibliográficas já apontadas e nos periódicos da época.
[5] A tutela militar foi a alternativa mais eficiente para o controle do poder emergente em abril, dadas a natureza do pacto contrarrevolucionário e as tarefas da ditadura. Martins (1977, p. 215-6) pontualiza: “Não podendo compor-se legitimamente com a nação, formando uma coalizão hegemônica entre os seus subsetores, a classe [burguesa] teve que impor-se coercitivamente à nação [...]. A ditadura surgiu, assim, como a melhor solução possível para o macroproblema da reprodução do sistema de classes em sua globalidade. Dado esse passo, estava resolvido em nome de quem o poder estatal seria exercido. [...] Para que a solidariedade de base entre as classes, estratos e frações dominantes pudesse traduzir-se ao nível do controle efetivo do aparelho estatal, a nenhuma das partes integrantes do bloco no poder deveria ser concedido o privilégio de compor [...] os quadros da elite governamental. O homem do governo, para contar com a confiança de todos, tinha que ser, em princípio, o homem de ninguém: a vontade geral burguesa só preservaria intacta a sua pureza abstrata caso fosse encarnada por um tertius. Um tertius que, além de ser estranho, à classe. Essa dupla condição foi perfeitamente atendida pelas correntes militares e tecnoburocráticas que se converteram na elite governamental contrarrevolucionária”.
[6] É o período em que começam a proliferar organizações clandestinas de esquerda, muitas reclamando o legado marxista (algumas frutos de cisões no PCB). São precisamente os grupamentos que, no momento seguinte, o regime liquidará com invulgar barbarismo (na já extensa documentação sobre a repressão no Brasil, é de consulta obrigatória o trabalho apresentado por Arns, 1985). É larga a bibliografia sobre a diferenciação e o destino deste segmento da esquerda. O texto mais recente que aborda esta temática, com o cuidado que é peculiar à seriedade do autor, é o de Gorender (1987). Mas ainda está por fazer-se a análise — que o próprio Gorender não realizou nessa obra — dos condicionamentos e das razões profundas que levaram boa parte dos melhores lutadores do povo brasileiro a cometer equívocos tão grosseiros na avaliação das forças em confronto e das perspectivas do período 1967-1973.
[7] Com a sua certeira perspicácia, Florestan Fernandes (1975, p. 359), observou que “se já houve, alguma vez, um paraíso burguês, este existe no Brasil, pelo menos depois de 1968”.
[8] Na entrada dos anos setenta, a análise teórica privilegiou o “modelo político” configurado no pós-68. Na massa crítica produzida neste terreno e, naturalmente, levando em conta as demais experiências vitoriosas da contrarrevolução preventiva, fica em relevo a dificuldade para a caracterização dos Estados e regimes delas emergentes. O que tem predominado — descontadas as caracterizações obviamente frágeis (“regimes de legitimação restrita”, no caso de analistas acadêmicos; “regimes militares”, no caso de protagonistas políticos) — é a recusa a valer-se do instrumental crítico-analítico da tradição marxista, como o comprova a voga internacional das análises do “autoritarismo”, esta pérola do cretinismo sociológico, que serve para compreender tudo, de Franco (Linz) a Videla, Médici e Pinochet (Garreton), voga constatável, por exemplo, nas antologias organizadas por Stepan (1973), Collier (1982) e Cheresky e Chonchol (1986).
A noção de autoritarismo — na qual convergem influxos da psicologia e da psicologia social, e em que concorrem paradoxalmente matizes de liberalismo e anarquismo — tem funcionado como panaceia descritiva e compreensiva, que, pela sua indeterminação, é aplicável a qualquer “objeto” e vale para as mais díspares conjunturas históricas (cf. o exemplo de Tavares, 1982). Seu valor heurístico, a nosso ver, é muito assemelhado ao da noção de totalitarismo, convenientemente desmontada, entre outros, por Chasin (1977). Um primeiro passo para avaliar a inépcia da noção de autoritarismo encontra-se em Fernandes (1979a); uma resenha crítica dos empregos da noção encontra-se em Quartim de Moraes (1986).
Sem menosprezo de outros estudiosos que lavraram a seara do autoritarismo, no Brasil o laurel de instrumentalizar mais seriamente a noção — com a simultânea recusa de trabalhar com a categoria de fascismo — parece caber a Fernando Henrique Cardoso (Cardoso, especialmente 1972 e 1975). A crítica conclusiva da interpretação cardosiana, que não é pertinente retomar aqui, está em belo ensaio de Marques (1977), no qual se fundamenta o caráter fascista do Estado brasileiro pós-68.
É de valor observar que a caracterização rigorosa dos regimes políticos “autoritários” do Cone Sul, na década de setenta, é fonte de ampla polêmica, conforme registra Cueva (1983, p. 209), que parece aceitar para eles a categoria de fascismo, já que, na mesma obra, anuncia um ensaio (que não pudemos examinar) intitulado “A política econômica do fascismo na América Latina”.
[9] É de notar que as políticas sociais típicas da autocracia burguesa (não apenas repressivas, “negativas”, mas “positivas”, com intenção coesionadora, dirigidas para obter consenso) emergem ao mesmo tempo em que a ditadura transita da conquista do Estado à modelagem do seu Estado — não se pense apenas no I Plano Nacional de Desenvolvimento (I PND), mas no largo elenco de programas anunciados (embora boa parte deles só anunciados) a partir de 1970.
[10] Na crise do “milagre” entrecruzam-se uma crise cíclica — potenciada inicialmente pela conjuntura internacional — e a crise estrutural do capitalismo no Brasil; daí, também, a extensão e a profundidade do processo aberto com o colapso do “milagre”. Análises diferenciadas sobre a crise do “milagre” encontram-se em Coutinho e Belluzo, orgs. (1982); a visão de seu principal estrategista aparece em Netto (1983).
[11] Moreira Alves (1987, p. 28) chama corretamente a atenção para o traço “intrinsecamente instável” do que denomina “Estado de Segurança Nacional”.
[12] Para uma apreciação do projeto de autorreforma no pós-79, cfr. PCB (1984).
[13] Nesta perspectiva, os dois passos são conjugados e da sua mútua consecução depende, em larga medida, o encaminhamento do projeto de autorreforma. Vê-se, pois, que lavram em equívoco aqueles que, apreciando o Governo Geisel, consideram que a brutal escalada contra a militância e a direção do PCB e, igualmente, contra o núcleo dirigente do PCdoB eram “provocações” do aparelho repressivo ao Presidente — a este só repugnavam os “excessos”.
[14] Da tese aqui sustentada — de que o Estado autocrático burguês foi um instrumento essencial para induzir à concentração e à centralização capitalistas, promovendo a emergência da oligarquia financeira e efetivando a integração entre os aparatos monopolistas e as instâncias estatais — não decorre a conclusão de que ele é imprescindível para manter a dominação burguesa que expressa a direção monopolista. Sobre este ponto, cf. Coutinho (1980, p. 112-118).
[15] É esta, em resumidas contas, a programática (aliás, inteiramente congruente com as teses sobre “autoritarismo” e “burguesia de Estado”) oferecida por Cardoso (1975).
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NETTO, J. P. “O processo da autocracia burguesa”. In: Ditadura e serviço social: uma análise do serviço social no Brasil pós-64. 8ª ed. São Paulo: Cortez, pp. 34-44.
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