sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Esquerdismo, fase superior do imperialismo

 
por Bruno Guigue
Le Grand Soir

O colapso da União Soviética significou o fim do comunismo? Aqueles que proferiram a oração fúnebre podem ter considerado os seus desejos realidade. Ao contrário do que acreditaram, o socialismo real não desapareceu de corpo e alma. O fato de a bandeira vermelha não pairar mais sobre o Kremlin não significa a sua extinção no planeta: 1,5 mil milhões de chineses vivem sob a liderança de um Partido Comunista que não mostra sinais de perder força. O Vietnã socialista está indo muito bem. Na Rússia, o Partido Comunista continua a ser a principal força de oposição. Os comunistas governam o Nepal e o estado indiano de Kerala. Apesar do bloqueio imperialista, os cubanos continuam construindo o socialismo. Os comunistas tiveram êxitos eleitorais no Chile e na Áustria. Dizer que o comunismo deixou apenas más lembranças e pertence a um passado longínquo é cometer um duplo erro de análise. Ele não somente contribuiu para o bem-estar de um quarto da humanidade, mas também não há indicação de que tenha dito a sua última palavra. Ele não está condenado pelo seu passado nem privado de um futuro. Pode registrar a seu crédito a luta vitoriosa contra o nazismo, uma contribuição decisiva para a queda do colonialismo e uma resistência obstinada ao imperialismo. Este triplo sucesso é suficiente para dar-lhe cartas de nobreza revolucionárias. O seu passado é também a longa série de avanços sociais e os milhões de vidas arrancadas da pobreza, analfabetismo e doenças.

O comunismo foi e é um esforço titânico para tirar as massas da ignorância e dependência. Permanecendo na URSS em 1925, o pedagogo Célestin Freinet expressou “sua surpresa e seu assombro, especialmente se considerarmos as condições em que este imenso progresso foi feito”. Pedagogos russos, escreveu ele, “encontraram na sua dedicação à causa do povo e na atividade revolucionária clareza suficiente não apenas para elevar a sua pedagogia ao nível da pedagogia ocidental, mas para ir mais além, e de longe, das nossas tímidas tentativas”. Nenhuma outra força política poderia ter tirado do subdesenvolvimento os países atrasados, coloniais e semicoloniais, pelos quais os comunistas foram responsáveis no século XX. O que seria a Rússia se tivesse permanecido nas mãos de Nicolau II ou Alexander Kerensky? O que seria a China se não tivesse escapado a Chiang Kai-shek e à sua camarilha feudal? Onde estaria Cuba se tivesse permanecido nas garras do imperialismo e seus mercenários locais? A revolução comunista em todos os lugares foi a resposta das massas proletarizadas à crise estrutural de sociedades em degradação, num cenário de atraso econômico e cultural. Se essa revolução aconteceu, foi porque respondeu às emergências da época. Na Rússia, na China e em outros lugares, foi fruto de um profundo movimento na sociedade, de um amadurecimento das condições objetivas. Mas sem o Partido, sem uma organização centralizada e disciplinada, tal resultado revolucionário seria impossível. Na ausência da liderança personificada pelos comunistas, com que vanguarda as massas poderiam ter contado? E por falta de alternativa, a que desespero teria levado o aborto das promessas revolucionárias?

O fato das formas de luta pelo socialismo não serem mais as mesmas não altera a questão. Esta luta ainda está viva ainda hoje. Os países capitalistas desenvolvidos estão em crise, e a única solução para essa crise é a formação de um bloco progressista em oposição ao bloco burguês. China, Vietnã, Laos, Síria, Cuba, Kerala, Nepal, Bolívia, Venezuela e Nicarágua estão a construir um socialismo original. Fingir ser comunista enquanto se lança um olhar desdenhoso para essas conquistas concretas é ridículo. Mas é o que fazem as incontáveis capelinhas do esquerdismo ocidental. O trabalho diário dos médicos cubanos, professores venezuelanos e enfermeiras nicaraguenses, a seus olhos, não atinge a dignidade da revolução mundial. Para esses “vestais” do fogo sagrado, tais conquistas são modestas demais para despertar o entusiasmo de um futuro brilhante. Guardiões intransigentes da pureza revolucionária, os esquerdistas adoram distribuir cartões vermelhos para aqueles que constroem o socialismo. Sem agirem em casa, ditam julgamentos sobre o que os outros fazem. E o pior é que aplicam os critérios da ideologia burguesa. Quando a Revolução Cubana derrubou Batista, os esquerdistas inventaram o slogan: “Cuba sim, Fidel não”. Com este slogan ridículo, reivindicaram defender a revolução enquanto condenavam a “ditadura castrista”. Mas o que é a Revolução Cubana sem o castrismo? E como assumir a via do socialismo, senão abafando uma oposição apoiada pelo imperialismo? A ofensiva ideológica contra Fidel Castro não refletiu apenas indiferença às condições da luta travada pelo povo cubano. Apoiou também tentativas de derrubar o poder revolucionário.

Durante os eventos de Tiananmen em junho de 1989, temos o mesmo cenário. Explodindo de entusiasmo pela rebelião, o comitê da Quarta Internacional proclama “a vitória da revolução política na China”. Ferida pela repressão que a atingiu, expressou a sua “solidariedade inabalável com os trabalhadores e estudantes que estão comprometidos numa luta impiedosa contra o regime estalinista assassino em Pequim”. Um “massacre sangrento” que mais uma vez revela “a depravação contrarrevolucionária do estalinismo, o mais insidioso e sinistro inimigo do socialismo e da classe operária”. Quando se conhece a substância do assunto, essa afirmação é estonteante. Porque “o Massacre de Tiananmen” é tema de uma narrativa particularmente falsa, impondo-se lembrar os fatos. Primeira distorção em relação à realidade:  a composição do movimento de protesto. As mídias ocidentais descrevem-no como um movimento monolítico, exortando o Partido Comunista a renunciar e pedindo o estabelecimento de uma “democracia liberal”. Isto está incorreto. A cuidadosa investigação publicada pela Mango Press em 4/junho/2021 aponta que o movimento inclui não apenas estudantes, “o grupo mais barulhento”, mas também “muitos operários, migrantes e trabalhadores rurais da região de Pequim, participando na ação, cada grupo tendo uma orientação política diferente. Alguns dos manifestantes eram marxistas-leninistas, outros maoistas radicais, outros liberais”. Segunda precisão, igualmente importante: “Esta não é uma conspiração sombria do governo chinês, mas um fato confirmado: uma operação conjunta MI6-CIA conhecida como Operação Yellowbird lançada para formar ‘facções pró-democraciaʼ. Tríades foram enviadas de Hong Kong para as universidades chinesas, para treinar estudantes na guerra de guerrilha, armando-os com bastões de ferro e ensinando-lhes táticas de rebelião. O objetivo final da Operação Yellowbird era infiltrar indivíduos no movimento de protesto, conseguindo infiltrar mais de 400”.

As declarações dos porta-vozes do movimento também são muito esclarecedoras. Os mais famosos no Ocidente são Chai Ling e Wang Dan. Como relata o documentário americano The Gate of Heavenly Peace. “Chai Ling foi entrevistada por Peter Cunningham em 28/maio/1989. Eis o que ela disse: “O tempo todo, guardei isto para mim porque, sendo chinesa, pensei que não deveria falar mal dos chineses. Mas não posso às vezes deixar de pensar — e dizer também — vocês, chineses, não valem a minha luta, não valem o meu sacrifício! O que realmente esperamos é derramamento de sangue quando o governo estiver pronto para massacrar descaradamente o povo. Somente quando a praça estiver inundada de sangue é que o povo chinês abrirá os olhos. Só então ele estará verdadeiramente unido. Mas como posso explicar tudo isto aos meus camaradas?” O ícone da Praça Tiananmen votava o seu povo ao martírio, mas optou pela fuga para os Estados Unidos via Hong Kong. Conclusão da Mango Press: “Obviamente, a liderança fabricada pelos serviços ocidentais para este protesto tinha um objetivo claro: criar as condições para um massacre na Praça Tiananmen. O protesto começou como uma demonstração de força pacífica para apoiar Hu Yaobang, mas foi cooptado por agentes estrangeiros”.

A forma como as autoridades chinesas finalmente restauraram a ordem faz parte da crítica do caso. Ao contrário da versão ocidental, mostraram grande moderação até que o motim estourou na noite de 3 a 4 de junho. De 16 de abril a 20 de maio, as manifestações puderam continuar sem contratempos. No dia 20 de maio, foi decretada a lei marcial e os manifestantes receberam ordem, por meio de noticiários e alto-falantes da praça, de voltar para suas casas. Algumas unidades militares tentaram entrar em Pequim, mas foram impedidas pelos manifestantes nas zonas de entrada. A 2 de junho, o exército fez a sua primeira tentativa de evacuar a Praça Tiananmen. As tropas do Exército de Popular de Libertação (EPL) enviadas para o local possuíam equipamento de choque rudimentar, apenas um em cada dez soldados armados com uma espingarda metralhadora. Seguindo ao longo da Avenida Chang'an, as tropas foram atacadas pela multidão. Alguns soldados foram desarmados, outros molestados pelos desordeiros. A tropa segue finalmente para a Praça Tiananmen, onde soldados desarmados persuadem os estudantes a irem embora. Mas na noite de 2 para 3 de junho, a violência explodiu nos becos e ao longo da Avenida Chang'an. Os desordeiros que confiscaram armas aos soldados estão ao ataque. Dezenas de veículos blindados são incendiados com coquetéis molotov e muitos soldados desarmados são capturados. De acordo com o Washington Post de 5/junho/1989, “os combatentes antigovernamentais estão organizados em formações de 100 a 150 pessoas. Eles estão armados com coquetéis molotov e bastões de ferro, para enfrentar o EPL, que ainda estava desarmado nos dias que antecederam 4 de junho”.

Barricadas são erguidas e os confrontos multiplicam-se. Em seguida, o motim transforma-se em massacre. Soldados capturados nos transportes de tropas são linchados ou queimados vivos, como o Tenente Liu Guogeng, o Soldado Cui Guozheng e o Primeiro Tenente Wang Jinwei. Em 3 de junho, o número de mortos já era de quinze soldados e quatro manifestantes. O governo então ordenou que o EPL recuperasse o controle das ruas. Durante a noite de 3 a 4 de junho, os militares entraram em massa na cidade e reprimiram o tumulto. Mas não houve combates na Praça Tiananmen. Nenhum tanque esmagou um manifestante. Após os acontecimentos de 4 de junho, o governo estimou o número de vítimas em 300 pessoas: soldados, policiais e manifestantes. Um recorde em que o mundo ocidental imediatamente qualificou como mentiroso: as mídias falaram de 1000 a 3000 e, finalmente, 10 mil vítimas. Uma semana depois, o governo chinês estabeleceu o número oficial de mortos em 203. Enquanto isto, a foto do homem parando a coluna de tanques na Praça Tiananmen percorre o mundo. Ilustra a bravura de um homem sozinho, diante de veículos blindados que simbolizam a brutalidade da repressão. Mas no vídeo completo, vemos que a coluna para de forma a não passar pelo corpo. O homem então sobe no primeiro tanque e bate na escotilha. Em seguida, desce lentamente do tanque e é levado pelos seus amigos que se lhe juntaram. Os tanques então continuam para Chang'an, voltando à sua base. Isso é tudo. O gênio propagandista fabricou um símbolo planetário com um não-evento.

“O relato dos eventos pelas mídias ocidentais, liberais e ditas livres, não faz sentido”, conclui o artigo da Mango Press. “Não há uma explicação da razão pela qual os alunos protestaram na Praça e muito raramente há uma discussão sobre os objetivos muito díspares dos grupos de alunos. Se acreditarmos que uma coluna de tanques para por causa de um homem, após o assassinato de 10.000, que mentiras ainda mais ridículas o Ocidente escreverá sobre a China?”. Na Praça Tiananmen em 4/junho/1989, não houve massacre. Houve combates intensos nas ruas laterais entre os elementos armados contrarrevolucionários, a polícia e o exército. O número de mortos em todo o evento foi de 241 no total, incluindo soldados, policias e manifestantes. Apesar da violência, não houve execuções. Wang Dan, líder do protesto e instigador da violência, não conseguiu fugir para o Ocidente e foi preso. Foi condenado a quatro anos de prisão, mais dois anos de detenção enquanto aguardou o julgamento por incitar a violência contrarrevolucionária. O homem recebeu apenas seis anos de prisão. Agora vive livremente no maravilhoso mundo do ocidente capitalista. O verdadeiro motivo pelo qual o Ocidente é forçado a mentir sobre os eventos de hoje é para salvar a face. Tentaram derrubar o governo soberano da China através da violência fascista, a sua tentativa de golpe foi esmagada”.

Não poderíamos dizer melhor. Mas a realidade da interferência imperialista e a nocividade das suas mentiras escapam ao radar da esquerda radical. Contaminada por um trotskismo de baixo nível que faria o próprio Trotsky corar de vergonha, obstina-se tanto mais contra os Estados socialistas quanto é totalmente inofensiva para os Estados capitalistas. Impotente e marginalizada nos seus países, exala o ressentimento contra o socialismo real. Incapaz de compreender a importância da questão nacional, despreza o anti-imperialismo legado pelos nacionalismos revolucionários do Terceiro Mundo e pelo movimento comunista internacional. Em vez de se por na escola de Ho Chi Minh, Lumumba, Sankara, Mandela, Castro, Nasser, Che Guevara, Chávez e Morales, lê o Le Monde e assiste à France 24. Acredita que há bons e maus, que os bons são como eles e que é preciso dar pancada nos maus. Fica indignada — ou incomodada — quando o chefe da direita venezuelana, treinado nos Estados Unidos pelos neocons para eliminar o chavismo, é preso por tentativa de golpe. Quando o Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) enfrenta dificuldades eleitorais, grita a par dos lobos imperialistas e apressa-se a denunciar alegados “abusos”. Finge não saber que a ruptura do abastecimento foi causada por uma burguesia importadora que negocia em dólares e organiza a paralisação das redes de distribuição na esperança de minar a legitimidade do presidente Maduro. Indiferente aos movimentos de fundo, esta esquerda contenta-se em participar na agitação à superfície, como se para ela a política não fosse um campo de forças, mas um teatro de sombras. Não admira, então, que passe ao lado das lições dadas pelas tentativas de desestabilização que se abatem sem cessar sobre a Revolução Bolivariana.

A primeira lição é que não se pode construir uma alternativa política sem correr o risco de um confronto decisivo com os donos do capital, estejam eles dentro ou fora das fronteiras. Por alternativa política, entenderemos exatamente o oposto do que se denomina “alternância”, ou seja, a simples troca de equipes no poder. É um processo muito mais profundo, que não se contenta com apenas algumas modificações superficiais, mas que põe em ação explicitamente as estruturas que determinam a distribuição da riqueza. Esta alternativa política identifica-se, portanto, com a retoma expressa pelo povo dos atributos da soberania. Pressupõe o rompimento dos laços que ligam o país ao capital estrangeiro dominante e ao capital comprador local que dele depende. Mas é uma tarefa colossal. Mal empreendido, o peso objetivo das estruturas é combinado com a guerra encarniçada travada pelos ricos para manter seus privilégios de classe. A imprensa internacional descreve a Venezuela como um país falido, mas esquece-se de precisar que essa falência é a de um país capitalista latino-americano. O país fez progressos significativos, mas a falta de transformação estrutural deixou-o no sulco da dependência econômica. Arruinado pela queda dos preços do petróleo, não soube — ou não pôde — construir um modelo alternativo. Se os bandidos da direita venezuelana se soltam nas ruas de Caracas sob os aplausos da imprensa burguesa e das chancelarias ocidentais, é porque a Venezuela não é Cuba. E se a Venezuela tivesse embarcado num processo de desenvolvimento autônomo não capitalista, provavelmente não haveria bandidos em Caracas.

A crise no na Venezuela tende a fazer as pessoas esquecerem, mas o chavismo foi apoiado por um poderoso movimento social que está longe de ter desaparecido. Desde a primeira eleição de Chávez, em 1998, ele lutou contra os preconceitos raciais e de classe. Reduziu dramaticamente a pobreza e o analfabetismo. Nacionalizando o petróleo, restaurou o controle dos recursos naturais para a nação. Alterando a política externa do país, rompeu com Israel, constituiu a aliança bolivariana e desafiou o Tio Sam no seio de seu “quintal” sul-americano. Aprovado pelo povo venezuelano, o chavismo abalou a desordem secular da América Latina em proveito das multinacionais norte-americanas e da burguesia racista. Claro que a Revolução Bolivariana não erradicou todos os males da sociedade venezuelana da noite para o dia e traz consigo a sua quota de erros e imperfeições. Usou o maná do petróleo para tirar da pobreza as camadas sociais mais desfavorecidas, mas desistiu de transformar as profundas estruturas sociais do país. Uma nova burguesia aproveitou a sua proximidade com o poder para capturar benefícios e consolidar privilégios. Pior ainda, a economia está nas mãos de uma burguesia reacionária que organiza a sabotagem para intensificar a crise e tirar Maduro do poder.

Mas de qualquer forma, a Revolução Bolivariana não tinha revolução só no nome, por isso só poderia desencadear o ódio vingativo dos ricos e despertar a hostilidade mortal de seus oponentes. Quando a esquerda ocidental se indigna com as — alegadas — vítimas da repressão policial em vez das operações sangrentas da ultradireita, esquece que um protesto de rua nem sempre é progressista, que uma exigência democrática pode servir de cartaz para a reação e uma greve pode contribuir para a desestabilização de um governo de esquerda, como demonstrou o movimento caminhoneiro chileno em 1973. A lição foi esquecida pela esquerda aburguesada dos países ricos, mas os verdadeiros progressistas latino-americanos sabem disso: se nós queremos mudar o curso das coisas, devemos agir sobre as estruturas. Nacionalização de setores-chave, rejeição das receitas neoliberais, restauração da independência nacional, consolidação de uma aliança internacional de Estados soberanos, mobilização popular para uma melhor distribuição da riqueza, educação e saúde para todos, são as diferentes facetas do projeto progressista. Ao contrário do que afirma uma ideologia que recicla as velhas loas da social-democracia, não é o radicalismo que condena o projeto à derrota, mas o medo de assumi-lo. Uma revolução raramente perece por excesso de comunismo, mas muito mais frequentemente, pela sua incapacidade de conduzi-lo.

Assim que ataca os interesses geopolíticos e geoeconômicos das potências dominantes, o projeto progressista cruza a linha vermelha. Uma vez ultrapassado, qualquer imprudência pode tornar-se fatal. O imperialismo e seus implementadores locais não oferecem brindes. Franco não deu nenhuma oportunidade à República Espanhola (1936), nem a CIA a Mossadegh (1953), nem Mobutu a Lumumba (1961), nem Suharto a Sukarno (1965). Allende cometeu o trágico erro de nomear Pinochet para o Ministério da Defesa e Chávez deveu sua salvação em 2002 à lealdade da guarda presidencial. Não basta estar ao lado do povo, devemos proporcionar-nos os meios para não perdê-lo, deixando que nossos inimigos ganhem a vantagem. Como disse Pascal, não basta que a justiça seja justa, ela também deve ser forte. Tantas questões para as quais a esquerda ocidental finge não entender nada.

Pseudo-internacionalista, recusa-se a ver que o respeito pela soberania dos Estados não é uma questão acessória e que é a principal reivindicação dos povos diante das reivindicações hegemônicas de um Ocidente em vassalagem perante Washington. Pretende ignorar que a ideologia dos direitos humanos serve de cortina para o intervencionismo ocidental, principalmente interessado em hidrocarbonetos e riqueza mineral. Faz campanha pelas minorias oprimidas em todo o mundo, sem perguntar por que algumas são mais visíveis do que outras. Prefere os curdos sírios aos sírios, simplesmente por serem minoria, sem ver que essa preferência serve à instrumentalização por Washington e endossa o desmembramento da Síria de acordo com o projeto neoconservador.

Procuraremos por muito tempo na literatura da esquerda ocidental, artigos que expliquem por que em Cuba, apesar do bloqueio, a mortalidade infantil é menor que a dos Estados Unidos, a expectativa de vida é a de um país desenvolvido, a alfabetização é de 98% e há 48% de mulheres na Assembleia do Poder Popular. Nunca leremos por que Kerala, este estado de 34 milhões de pessoas governado pelos comunistas e seus aliados desde a década de 1950, tem de longe o maior índice de desenvolvimento humano na Índia, e por que as mulheres desempenham um papel social e político de liderança. As experiências de transformação social realizadas longe dos holofotes, em países exóticos dificilmente interessam a esses progressistas fascinados pela escória televisiva. Movida pela moral, intoxicada pelo formalismo pequeno-burguês, a esquerda ocidental assina petições e lança anátemas contra chefes de Estado que têm o infeliz hábito de defender a soberania dos seus países. Este maniqueísmo elimina a dolorosa tarefa de analisar cada situação concreta e de olhar além da ponta do nariz. Age como se o mundo fosse um, homogêneo, atravessado pelas mesmas ideias, como se todas as sociedades obedecessem aos mesmos princípios antropológicos, evoluindo segundo os mesmos ritmos. Ela prontamente confunde o direito dos povos à autodeterminação com o dever dos estados cumprirem as exigências do Ocidente que se apresenta como juiz supremo.

No drama sírio, este tropismo neocolonial levou a extrema esquerda a desviar-se pateticamente. Praticando a negação da realidade, engoliu avidamente a falsa versão das mídias ocidentais. Baseou-se em fontes questionáveis cujos números não verificáveis e afirmações gratuitas repetiu continuamente. Disciplinadamente, acreditou na narração ridícula do carniceiro-de-Damasco-que-massacra-seu-povo. Acreditou sem pestanejar na false-flag do ataque químico como engoliu a mistela onusiana do Sr. Powell. Caiu na armadilha da propaganda humanitária que descaradamente faz a triagem entre as boas e as más vítimas. A espantosa cegueira desta esquerda (como a) francesa deve-se, antes de mais, à sua postura moral indecifrável. Uma grelha de leitura maniqueísta entorpeceu a sua mente crítica, isolou-a do mundo real. Desesperada para identificar os bons (rebeldes) e o mau (Assad), recusou-se a entender um processo que ocorre noutro lugar que não no limbo das suas ideias. Quando se designam os protagonistas de uma dada situação histórica usando categorias como bem e mal, descartamos toda racionalidade. Certamente podemos ter preferências, mas quando essas preferências inibem o pensamento crítico, deixam de ser preferências, são inibições mentais.

A segunda razão para esta cegueira decorre de uma falta abissal de análise política. Essa esquerda radical não quis ver que o equilíbrio de poder na Síria não era aquilo em que acreditava. Reconstruiu a narrativa dos eventos como achou por bem dar forma à fantasia de uma revolução árabe generalizada que varreria o regime de Damasco como havia varrido outros, ignorando precisamente o que tornava única a situação síria. Aqueles que se orgulham de conhecer os clássicos deveriam ter aplicado a fórmula com a qual Lênin definiu o marxismo: “a análise concreta de uma situação concreta”. Em vez de se submeter a esse exercício de humildade diante da realidade, a extrema esquerda ocidental acreditou ver o que tinha vontade de ver. Abusando da sua própria retórica, apostava numa onda revolucionária que varreria tudo no seu caminho, como na Tunísia e no Egito. Ruim escolha. Privada de uma base social consistente no país, a gloriosa “revolução síria” não estava próxima. Uma verdadeira farsa sangrenta, uma invasão de desesperados tomou seu lugar. Esta invasão do berço da civilização por hordas de gente sem cérebro tomou o lugar, na imaginação esquerdista, de uma revolução proletária. O movimento trotskista não queria ver que as manifestações populares mais marcantes de 2011 foram a favor de Bashar Al-Assad. Desdenhosamente rejeitou a posição do Partido Comunista Sírio, que se aliou ao governo na defesa da nação síria contra seus agressores. Empurrando a negação da realidade para as fronteiras do absurdo, este esquerdismo declarou-se solidário, até ao fim, com uma “revolução síria” que existia apenas na sua imaginação.

O secretário-geral do Partido Comunista Sírio, Ammar Bagdash, respondeu antecipadamente em 2013: “Na Síria, ao contrário do Iraque e da Líbia, sempre houve uma forte aliança nacional. Os comunistas trabalham com o governo desde 1966, sem interrupção. A Síria não poderia ter resistido confiando apenas nos militares. Ela resistiu porque pôde contar com uma base popular. Além disso, contou com a aliança do Irã, da China, da Rússia. E se a Síria continuar de pé, “tronos” cairão porque ficará claro que existem outras vias. A nossa luta é internacionalista. Disse-me um especialista russo: o papel da Síria é como o da Espanha contra o fascismo”. Teste cruel para o esquerdismo europeu. Para analisar a situação síria, um comunista sírio que contribui para a defesa de seu país será sempre melhor do que um esquerdista francês que fantasia a revolução num bar do Quartier Latin. Incapaz de compreender o que se passa no local, a extrema esquerda é vítima de um teatro de sombras para o qual escreveu um guião imaginário. Não ouviu o que os marxistas locais estavam a dizer-lhe, representou a revolução por procuração, sem perceber que essa revolução só existia nos seus sonhos. Visto que o mito da oposição democrática e não violenta tinha que ser preservado, o relato dos eventos foi expurgado de qualquer coisa que pudesse alterar sua pureza. A violência dos ativistas wahhabistas foi mascarada com um dilúvio de propaganda. As provas do terrorismo, uma explosão de ódio, verdadeira face dessa falsa revolução, foi apagada dos ecrãs. Da mesma forma, essa esquerda bem pensante desviou hipocritamente o olhar quando os fogos da guerra civil foram atiçados por uma avalanche de dólares das petromonarquias.

Pior ainda, fez vista grossa à perversidade das potências ocidentais que apostaram na escalada do conflito incentivando a militarização da oposição, enquanto uma imprensa recebendo ordens profetizava com alegria a queda iminente do “regime sírio”. Sem vergonha, esta esquerda decalcou a sua leitura parcial do conflito sobre a agenda atlantista de “mudança de regime” exigida pelos neoconservadores. Enquanto se autodenominava anticolonialista, deixou-se arregimentar por um imperialismo determinado a causar o caos num dos poucos países árabes não comprometido com o ocupante sionista. A história lembrará que a esquerda radical serviu de respaldo à OTAN na tentativa de destruir um Estado soberano sob o falso pretexto dos direitos humanos. Mas é verdade que ao movimento trotskista nunca têm faltado argumentos. Para o acadêmico Gilbert Achcar, a causa é compreendida seguindo o “roteiro” da Guerra Fria, o novo roteiro consiste em apoiar “qualquer regime que seja objeto de hostilidade de Washington”. A lógica era: “o inimigo do meu amigo (a URSS) é meu inimigo”; o novo roteiro é: “o inimigo do meu inimigo (os Estados Unidos) é meu amigo”. Segundo ele, uma receita para o “cinismo sem limites”, esta atitude política “centrada exclusivamente no ódio ao governo dos Estados Unidos”. Pior, isso levaria a “oposição sistemática a qualquer coisa que Washington faça no cenário mundial e levaria a um apoio crítico para regimes totalmente reacionários e não democráticos, como o sinistro governo capitalista e imperialista da Rússia (imperialista de acordo com todas as definições do termo)”.

Gostaríamos de conhecer essas “definições” de imperialismo, mas nunca o saberemos. A Rússia não invade nenhum território estrangeiro, não impõe a outros Estados nenhum embargo, não pratica nenhuma “mudança de regime”. O orçamento militar da Rússia é 8% do da OTAN. A Rússia tem quatro bases militares no exterior, enquanto os EUA têm 725. O retorno da Crimeia ao regaço russo não é mais chocante do que a adesão do Havaí aos Estados Unidos ou a adesão de Mayotte à França. Mas é diante da tragédia síria que Gilbert Achcar exala a sua hostilidade para com Moscou. A intervenção russa, de fato, prestou uma ajuda inestimável ao Estado sírio na reconquista do território nacional às milícias extremistas apoiadas pelos países da OTAN. A acusação não comprovada contra a Rússia é então acompanhada, de forma bastante lógica, por uma absolvição dos Estados Unidos: “Washington manteve-se discreto na guerra na Síria, apenas intensificando a sua intervenção quando o chamado Estado Islâmico lançou uma grande ofensiva e cruzou a fronteira com o Iraque, após a qual Washington limitou sua intervenção direta na luta contra o ISIS”. Perfil discreto dos Estados Unidos na guerra na Síria? Obviamente, Gilbert Achcar nunca ouviu falar dos (falsos) “Amigos da Síria”, do plano de Wolfowitz de pulverizar o Oriente Médio em entidades religiosas, da operação “Timber Sycamore”, dos milhares de milhões de dólares pagos à nebulosa jihadista via CIA, das entregas de armas por países ocidentais a milícias extremistas e o embargo infligido ao povo sírio, privado de medicamentos por democracias corajosas que escoam o seu material de guerra para os reis do petróleo.

Pior ainda, lemos nos escritos do acadêmico de esquerda que “a influência mais decisiva de Washington na guerra na Síria não foi a sua intervenção direta — de importância primária apenas para os “novos roteiristas”, focados exclusivamente no imperialismo ocidental — mas sim proibindo os seus aliados regionais de entregarem armas antiaéreas aos rebeldes sírios, principalmente devido à oposição de Israel”. Portanto, o papel de Washington, sob a influência benéfica de Israel, foi privar esses pobres rebeldes de armas antiaéreas que teriam permitido lutar contra o exército de Bashar Al-Assad. É preciso realmente estar obcecado pelo “imperialismo ocidental”, que o autor coloca entre aspas, para imaginar que os Estados Unidos têm algo a ver com a guerra na Síria. De fato, Gilbert Achcar transpõe para o caso americano a tese absurda do estudioso pró-islamista François Burgat a respeito das petromonarquias: elas não desempenharam nenhum papel no drama sírio, é bem conhecido. Quanto ao papel de Israel, único Estado a bombardear a Síria continuamente desde 2012, Achcar apenas o menciona para ilibá-lo. Com tais suposições, não é surpreendente que a maioria das organizações de esquerda tenha feito campanha pela “revolução síria”, apoiando entusiasticamente uma oposição fantoche paga pelos Estados Unidos, exigiram entregas de armas antiaéreas aos “simpáticos rebeldes”, imploraram à OTAN para bombardear a Síria com mísseis, reprovaram os governos ocidentais por não terem destruído o legítimo Estado sírio, gritaram contra a Rússia, China e Irã, claramente culpados a seus olhos, por defenderem um Estado soberano atacado por hordas de mercenários lobotomizados.

Se insistimos no caso da Síria, é por destacar o colapso de uma esquerda que às vezes se afirma “comunista”, embora atenda aos desejos de seus piores inimigos. Tal como Trotsky pedindo a “liquidação” do grupo dominante soviético em 1939, esta esquerda pseudorrevolucionária serviu os interesses imperialistas com dedicação inabalável. Influente em alguns meios de comunicação, espalhou uma falsa imagem dos Estados e governos visados por Washington. Em 2020, bastou o secretário de Estado dos EUA acusar o governo chinês de “genocídio” em Xinjiang para o Liberation publicar na primeira página: “Em Xinjiang, genocídio em andamento”. A submissão desta chamada imprensa livre à agenda imperialista atingiu níveis sem precedentes. Liderada por ex-esquerdistas, ela analisa todos os governos que desagradam a Washington por meio de uma jurisdição de direitos humanos cujas regras são definidas pelo Congresso dos Estados Unidos. A demonização de Hugo Chávez, Nicolas Maduro, Daniel Ortega e Evo Morales coexiste com a de Xi Jinping, Vladimir Putin, Bashar Al-Assad e Kim Jong-un, todos culpados de defenderem a soberania dos seus países. Basta imputar-lhes uma violência real ou imaginária contra oponentes ou jornalistas para torná-los tiranos impiedosos e sem princípios, incorrendo na ira vingativa do mundo livre e do seu braço armado, os EUA. Nesta configuração ideológica, o imperialismo toma como pretexto a defesa dos direitos humanos para desestabilizar os Estados recalcitrantes. A ideologia esquerdista assume a função de cobrir essa ingerência com vestes progressistas.

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[0] O original, “Le gauchisme, stade suprême de l’impérialisme”, encontra-se em Le Grand Soir. Tradução original de Resistir.info.
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