segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Breves notas críticas sobre a categoria "classe-que-vive-do-trabalho"



por Paulo Ayres

O professor Ricardo Antunes (Unicamp) é uma das principais referências no estudo do chamado "mundo do trabalho" (usando o crachá de um setor particular de uma já "ciência particular", a chamada "sociologia do trabalho"). O cientista social paulista presta uma enorme contribuição para o nosso lado da barricada nos debates contemporâneos referentes ao estudo da sociedade (os "senhores neutros" de sabores positivistas podem parar a leitura agora, caso queiram). E quando eu ironizo com a expressão "o nosso lado da barricada", ela possui até um significado dobrado: o professor está alinhado com a tradição marxista para fazer suas análises das dinâmicas e transformações do trabalho (ele é o anti-Domenico De Masi que nós pedimos a Zeus); e, além disso, como mesmo dentro da própria tradição marxista também vale a máxima "tudo se divide, tudo se separa", ele também é lukacsiano. Ou seja, Antunes faz parte da corrente que podemos chamar de marxismo ortodoxo de inspiração lukacsiana (e, caso, os camaradas leitores ainda não tenham percebido, este blog está inclinado para este lado também - embora possa reproduzir artigos, obras artísticas ou notícias feitas por pessoas não alinhadas com esta concepção e, é claro, permitir que, quando alguém não concordar com algo, se sinta à vontade para discordar nos comentários).

Os estudos sobre a Ontologia do Ser Social (e, de certa forma, sobre toda a produção teórica do Lukács tardio) estão na sua fase mais fecunda e, curiosamente ou não, tem no Brasil seu principal cultivo. Bom, acontece que o desenvolvimento deste "lukacsianismo" passa a criar, inevitavelmente, alguns rachas dentro desta turma de pesquisadores. É natural que entre os comentadores da Ontologia se estruture algumas discordâncias de interpretação quanto ao tratamento de certas categorias.

Vamos comentar aqui, brevemente, uma pendenga de longa data, que atravessa a tradição marxista e ecoa nesses estudos dos fundamentos ontológicos de Marx: a noção fiel e ortodoxa de classe trabalhadora (como sinônimo de classe operária) e a noção revisionista e expansiva de "classe trabalhadora". Na turma a que nos referimos, os grandes representantes de respectivas posições contrárias são Sérgio Lessa e Ricardo Antunes. E como a nossa posição comunga com a ortodoxia marxista de Lessa (não confundi-la com a dogmática "marxista-leninista" [stalinista], pois são duas coisas distintas e a ortodoxia, nesse caso, significa uma postura metodológica), obviamente o conteúdo deste blog já passou e tende a passar por essa ótica várias vezes. Então, nos concentremos rapidamente nesta análise alternativa de Antunes:

1) Antunes nada mais fez que batizar sua adesão à ideia de "classe trabalhadora expandida" com o nome pouco expressivo de "classe-que-vive-do-trabalho".

2) Suas intenções são as melhores: afirmar a centralidade (ontológica e política) do trabalho e confrontar as teses dos últimos tempos sobre o "fim do trabalho" e/ou o "questionamento de sua centralidade".

3) Mesmo para aqueles que compram a ideia de "classe ampliada" o termo se mostra impreciso: ora, todas as classes vivem do trabalho direta ou indiretamente. Portanto, a expressão "classe-que-vive-do-próprio-trabalho" soa mais adequada para aquilo que está sendo indicado.

4) No entanto, mesmo admitindo essa leve correção de nome, ela só leva ao beco escuro e sem saída que a noção de "classe trabalhadora ampliada" está destinada a experimentar. Pois quem disse que tudo o que popularmente se chama trabalho tem a mesma equivalência ontológica?

5) O próprio Antunes, como bom lukacsiano que é, sabe que na ontologia do ser social o trabalho fundante é uma posição teleológica primária e as outras formas de práxis são secundárias.

6) Por isso, para dar conta deste caldo, só lhe resta apostar na ideia de que as transformações dos últimos tempos criaram um processo de imbricação entre trabalho manual e intelectual, entre trabalho produtivo e improdutivo e entre esfera de produção e setor de serviços. Uma espécie de "metabolismo laborativo-material-espiritual-assalariado-entrelaçado" como polo oposto e alimentador do capital.

7) Mas, como ele não pode simplesmente dissolver por completo a classe operária dentro desde mastodonte chamado "classe-que-vive-do-trabalho", o cientista social mantém a postura interessante de afirmar que o operariado se caracteriza pelo seu papel direto e diferenciador e é o núcleo dentro desse agrupamento social ampliado. Complemento honesto, mas que fica insuficiente diante da mescla operada pelo autor.

8) Pois essas idas e vindas teóricas nem teriam razão de existir se Antunes optasse pelo caminho do óbvio: proletariado e os outros trabalhadores assalariados não passaram a pertencer à mesma classe social só porque os últimos aumentaram em número. Continuam ser posições ontológicas distintas dentro do processo de reprodução social.

9) Isso, como já dissemos em outra oportunidade, não exclui o fato de que na luta política, a unidade, a confraternização ideológica em torno de uma meta revolucionária, podem reunir operários e outros trabalhadores sob uma mesma bandeira. Não precisa mexer nos fundamentos ontológicos para isso.

10) Por fim, se levarmos em conta o Livro I d'O Capital (sem procurar brechas discordantes em textos anteriores, rascunhos ou capítulos descartados) e se captarmos o movimento da  própria realidade em sua dinâmica, chegaremos à conclusão de que o proletariado é a única classe de trabalhadores assalariados que vive inteiramente do seu próprio trabalho.
 
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Referências bibliográficas:
ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 6ª ed., São Paulo: Cortez; Campinas: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1999.
______. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999.
DE MASI, Domenico. Desenvolvimento sem trabalho. 2ª ed., São Paulo: Esfera, 1999.
LESSA, Sérgio. Trabalho produtivo e improdutivo. 2009. Disponível em: <http://www.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes/traproimp.html>. Acesso em: 12 set. 2011.
LUKÁCS, György. Prolegômenos para uma ontologia do ser social. São Paulo: Boitempo, 2010.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Vol. I, São Paulo: Abril Cultural, 1983 (Tomo I), 1985 (Tomo II).
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