quinta-feira, 20 de março de 2014

A importância fundamental da causa operária


por Paulo Ayres

I. A diferença entre classe social e categoria profissional

Ao passar a propaganda política do PCO (Partido da Causa Operária) na televisão, imaginamos que alguém, num comentário pouco irônico e muito ingênuo, insinue algo como "precisamos do partido da causa bancária" – isso claro se o sujeito do exemplo for um bancário; mas poderia ser de qualquer outro ramo profissional não-operário exigindo a importância de ter um partido político com o nome de sua "classe", especificamente desta forma.

Para início de conversa, há um erro básico aí (apenas não explícito para os não familiarizados com o estudo destes temas; o que é compreensível): confundir classe social e categoria profissional.

É certo que há um uso popular da palavra "classe", que a usa de forma abrangente e pouco criteriosa para os mais diversos agrupamentos, inclusive para falar de "classe de médicos", por exemplo. Uso indevido e só traz mais confusões categoriais. A utilização do termo na sociologia do establishment (ciência particular burguesa), por outro lado, mira na superfície da quantia de renda e é mais coerente que esta, apesar de ser míope na obviedade da distribuição da riqueza (o velho e popular tripé da "classe baixa", "classe média" e "classe alta" ou, mais recentemente, num patético abecedário de "classes A, B, C, D, E, F...").

Mas classe social, à luz do materialismo histórico-dialético, é determinada pela posição que um indivíduo ocupa na estrutura produtiva. Por esta perspectiva, há duas classes fundamentais e antagônicas no nosso mundo moderno, e a classe operária é uma delas. O polo oposto da classe dominante. E, como já foi dito e repetido à exaustão, há várias camadas intermediárias ("classes de transição") entre elas. A maioria das categorias profissionais existentes (advogados, veterinários, assistentes sociais, professores, bailarinos etc.) está contida nestas camadas – mesmo quando tais profissionais são assalariados. Já os metalúrgicos, os boias-frias, os agricultores assalariados, os pedreiros, os mineradores etc. são proletários. Ou seja, são da classe operária.

Assim sendo, a classe operária (ou proletariado) engloba diversas categorias profissionais, mas não todas, é claro. Todavia, isso não significa que toda a parte da população mundial não-operária não tem nada a ver com a causa operária. Muito pelo contrário. Até porque é necessário que, no campo das lutas políticas, as diversas partes do conjunto (geral) dos trabalhadores se unam em protestos e mobilizações. E, na próxima parte deste texto, tentaremos, humildemente, demonstrar que a causa operária não é apenas mais uma causa importante para abraçarmos (como por exemplo, a causa feminista, a causa dos direitos dos negros, dos índios, dos homossexuais etc.), mas é a causa mais importante e abrangente entre todas as causas importantes e progressistas.

II. A causa principal entre várias causas importantes

Nos últimos tempos está acontecendo um fenômeno de divisão das lutas populares em torno de pautas específicas. Esta tendência foi se intensificando desde a segunda metade do século passado (XX), época em que foi notada e já elevada à condição de provável caminho onde as lutas de classes clássicas desembocariam. Vários setores deste vasto campo chamado Esquerda passam a erguer mais frequentemente outras bandeiras na mesma altura da bandeira que condena a exploração trabalhista típica do capitalismo. Sem falar que muitos da chamada "nova esquerda", então, até colocam estas causas acima da causa classista tradicional, implicando numa procura de um "novo sujeito revolucionário" – e , às vezes, até cancelando aspirações revolucionárias e se conformando com o reformismo.

Hoje em dia o que não faltam são causas (e não dá para ser diferente num mundo cada vez mais conectado e ao mesmo tempo fragmentado em questões distintas). Todos os desníveis e desigualdades existentes se colocam como obstáculos distintos para diferentes grupos sociais. Lembrando que estas desigualdades podem ser aquelas socialmente construídas, como também as que tenham algum componente natural (os direitos dos idosos, das gestantes, das pessoas com deficiência etc.); e aqui se diz "algum componente natural", pois o social, esta esfera ontológica que caracteriza o ser humano, envolve também muitas destas questões.

Todavia, uma pergunta se coloca: até onde vai o poder de transformação da sociedade destas lutas parciais e concentradas? Não é preciso nenhum esforço teórico para ver que todas elas se chocam com o muro do formato de organização social que predomina no nosso mundo.

O racismo, o machismo, a homofobia, entre outras chagas da sociedade, não podem ser ignorados. Estas questões são graves e urgentes? Sim, claro que são. Os ativismos que visam combater estas questões são importantes e necessários? Sem dúvida que são imprescindíveis. Mas o ponto fundamental é reconhecer que são lutas dentro de uma sociedade doente. Enquanto a questão proletária[1] questiona e tem como objetivo o fim desta própria sociedade de classes e a construção de outra que supere suas contradições.

Pode parecer meio óbvio, mas vamos fazer aquele velho exercício mental (ou ilustrado, que seja) de conceber a sociedade como estrutura econômica e superestrutura espiritual-ideológica. Pode ser um prédio ou uma pirâmide. As "lutas superestruturais", digamos assim, voltadas para si mesmo, podem fazer uma muvuca lá dentro de alguns andares deste edifício social, mas não fazem um arranhão sequer na base e na estrutura em si desta construção.

A causa feminista, a causa palestina, a causa dos sem teto, a causa dos negros, a causa dos refugiados, a causa dos presidiários, a causa dos estudantes, a causa dos moradores de rua, a causa dos dependentes químicos, a causa da defesa dos animais etc. são causas legítimas e importantíssimas. Mas, além de reconhecer que são lutas limitadas, só é produtivo para a perspectiva emancipadora da humanidade se tais engajamentos tenham algum tipo de ligação com a causa operária (ou seja, que incorporem o anticapitalismo radical como a essência de seu movimento).

Com essa correção do amontoado caótico, que aparentemente surge para nós como mundo – uma correção que podemos chamar de materialista mesmo –, fica claro porque se pode afirmar que a causa operária é a mais importante, abrangente e transformadora entre as causas progressistas. No entanto, há uma exceção. Ou, pelo menos, em termos de predomínio ontológico, há uma questão que rivaliza com ela em questão de importância: a questão da degradação ambiental. Por quê? Ora quando falamos da questão proletária (que nada mais é que a própria questão do trabalho sob o cabresto da propriedade privada e do mercado), estamos falando do elo que liga sociedade e natureza: o trabalho fundante. E quando falamos em questões ambientais estamos falando da própria natureza (que, no nosso mundo, está sofrendo impactos graves do metabolismo do capital, ou seja, produzidos pelo homem). Se uma esfera é a base do edifício social, a outra é o próprio chão onde este edifício está erguido e da onde ele tira os elementos necessários para a sua sobrevivência.

Porém, mesmo tendo essa outra causa tão profunda quanto ela, a causa operária é, ainda sim, a mais importante entre todas – a que carrega em si a potencialidade de condução da humanidade rumo à sociedade emancipada. Falaremos disto na terceira parte deste texto.

III. O futuro da humanidade e o ponto em que sociedade e natureza se conectam

O futuro da humanidade e do planeta. Esse já virou um tema recorrente. Pauta clichê de incontáveis correntes, congressos, movimentos, plataformas eleitoreiras etc. É como se a visibilidade do horizonte sinistro que se desenha a nossa frente estimulasse uma preocupação inconclusa com o que nos aguarda. Se o desconhecido e o futuro em si já costumam inquietar os indivíduos, as ideias apocalípticas quanto ao futuro do mundo deixaram de ser tópicos da religião e da ficção científica. O fato deste assunto ter se tornado recorrente é bom, por um lado, mas, por outro, demonstra como a visão da totalidade está comprometida por extremismos que engessam boa parte de qualquer "ativismo planetário", independente de suas boas intenções.

O vermelho socialista hoje disputa espaço com o verde ambientalista. Pelo menos, em muitos casos são tratados como se não tivessem ligação. Para alguns, inclusive, é como se no campo estritamente humano, as coisas já tivessem sido resolvidas, ao menos no "mundo livre ocidental" e alguns de seus quintais. A abolição da escravidão já ocorreu, a mulher "independente-empreendedora" é a mulher-modelo do novo século, algumas das chamadas "minorias" vão aos poucos conquistando seus direitos... Para esse tipo de pensamento, são apenas reformas e aperfeiçoamentos aqui e ali que precisam ser feitos. O foco, nesta perspectiva, passa a ser a nossa casa, o planeta - este sim, como meio-ambiente, seria a grande vítima deste homem moderno e inconsequente.

Além disso, não é raro nestes casos que apareça a velha cortina de fumaça irracionalista, que passa a mirar na ciência e na tecnologia em si como os vilões da degradação humano-ecológica. Critica-se a Modernidade. Quando isso ocorre (e ocorre muito), temos de perguntar: mas e quanto ao modo de produção capitalista? Se a resposta tergiversar, pode saber: se trata de ecocapitalismo.

"Consumo consciente" e "desenvolvimento sustentável" são alguns dos termos da moda. Pura demagogia se está sugerindo que possam ocorrer dentro da ordem do capital. E já é caso de ingenuidade ou má-fé quando abandonam aquelas questões referentes ao mundo tipicamente social. O nosso mundo continua fundado em alienação e exploração – e a degradação ambiental praticada pelo homem está intimamente conectada com esta característica.

Daí o porque não ter como fugir da causa operária. É por sua posição chave que ela está no ponto exato em que os graves problemas sociais e ambientais irradiam. O trabalho fundante, categoria que cria o mundo dos homens, se situa como a mediação fundamental entre o ser social e o ser orgânico e inorgânico (a natureza). E se já argumentamos que a questão proletária está na base das outras mazelas sociais que erguem bandeiras, do mesmo modo, ela está na questão de como o homem se organiza para retirar da natureza os elementos necessários para a sua sobrevivência e reprodução da sociedade. O trabalho fundante (que podemos chamar também de posição teleológica primária, para utilizar uma expressão lukacsiana) é, portanto, o ponto nevrálgico tanto "para cima" (as relações próprias da sociedade), quanto "para baixo" (as relações entre homem e o meio ambiente).

E vivemos no ápice da sociedade de classes, onde este trabalho e as outras práxis estão em sua esmagadora maioria voltadas para atender as necessidades do capital e não da humanidade. A caça aos lucros caracteriza este metabolismo cego e irracional. Entretanto, ainda há gente que quer convencer outras pessoas que o capital é controlável. É este tipo de discurso ecocapitalista que se coloca (ou se pretende colocar) como obstáculo no diálogo entre socialistas e ambientalistas (bom, só a título de curiosidade, há casos ainda mais graves, como alguns ecofascistas, que dizem que os testes em animais deveriam ser feito em presidiários – mas, obviamente, nem todos os envolvidos com a causa dos animais endossam esta ideia grotesca).

Se o futuro que nos aguarda pode ser sombrio ou emancipado (lembrando que já vivemos num mundo de grande barbárie e a confirmação deste caminho apocalíptico seria a intensificação da barbárie e até mesmo a autodestruição), isto passa inevitavelmente pela solução da questão operária, que nada mais é que a questão estrutural-sistêmica.

Ao refletir sobre estas ideias apresentadas, esperamos contribuir para que não se veja mais expressões como movimento operário, causa operária, classe operária, partidos operários, entre outras, como apenas pertencentes a mais um conjunto isolado de contestação nesta realidade que aparenta ser fragmentária.

= = =
Nota:
[1] O termo questão proletária (ou operária, ou mesmo questão estrutural-sistêmica) é mais adequado do que o popular "questão social", que tem origem burguesa para explicar as mazelas sociais da Modernidade. E, como se percebe, a questão aqui é tratada como se ela implicasse mesmo em perspectiva revolucionária (ou, pelo menos, anticapitalista gradualista), pois, quanto ao problema de haver uma "causa operária" capitalista-reformista (com vários movimentos operários servindo de exemplo), isso não afeta o uso destes termos, pois entendemos que tais causas nem pode ser chamadas de operárias, mas sim algo como "causas profissionais", que estariam dentro daquilo que Lenin chamou de lutas econômicas. E isso leva também às considerações sobre classes sociais e categorias profissionais ditas na primeira parte deste texto.
= = =

Nenhum comentário:

Postar um comentário