por Sergio Lessa
Com apenas três exceções, a saber, [Duncan] Gallie, [André] Gorz (em outros textos que não o Adeus ao proletariado)
e João Bernardo, se considerarmos o leque que abrimos de [Serge] Mallet
e [Pierre] Belleville, nos idos de 1963, até [Ricardo] Antunes e
[Marilda] Iamamoto, em 1999, apesar da enorme diferença de todos os
autores, há algo que os aproximam: consideram que as transformações
técnicas e as estratégias gerenciais seriam a causa das transformações
nas relações de produção e, por extensão, a causa da alteração nas
classes sociais. Uma “sociedade de produtores libertos” “pode aparecer
como processo lógico de evolução técnico-econômica”, diz Mallet (Mallet,
1963, p. 175); Belleville postula que o desenvolvimento tecnológico
superou a separação entre o trabalho manual e o intelectual (Belleville,
1963, p. 11). Vimos como algo muito semelhante pode ser encontrado em
[Adam] Schaff e em [Jean] Lojkine. Para o primeiro, o desenvolvimento
tecnológico simplesmente eliminaria o proletariado ao robotizar as
linhas de montagem; o segundo considera que o desenvolvimento
tecnológico teria nos conduzido a uma sociedade pós-mercantil, portanto,
não mais capitalista. Os exemplos são muitos. E são bastante
diferentes. Para alguns, a inovação tecnológica ou descoberta
“revolucionária” é a automatização, para outros, a informatização e a
robotização; para alguns se trata do aprofundamento do taylorismo, para
outros de sua substituição pelo toyotismo; alguns argumentam o fim da
alienação do trabalho pela sua versão flexibilizada, outros fazem o
exato oposto. Uns argumentam que as alterações se dariam por uma mudança
nos padrões de consumo, outros, pela alteração nos padrões dos
conflitos sociais e para outros, ainda, pela alteração da percentagem da
população distribuída entre os setores econômicos. Diferenças
consideradas, os autores que examinamos derivam das transformações
tecnológicas a alteração da sociedade que consideram essencial:[1] o fim do proletariado.
Tal como a versão logicizada da identidade da identidade com a não identidade de Hegel (ou sua fórmula esterilizada da negação da negação do marxismo vulgar) é capaz de converter a água em vinho,[2] a tecnologia produzida sob as relações de produção capitalistas teria poderes mágicos capazes de reverter o próprio modo de produção que está em sua origem. (Kumar, 1997, p. 49) Como seria isto possível?
Nenhum dos autores que analisamos sequer considera o problema. Tomam como seguro e comprovado que o desenvolvimento tecnológico é o que determinaria o desenvolvimento histórico. Tal concepção condiz com uma versão banalizada da história do capitalismo segundo a qual, por exemplo, teria sido a descoberta da máquina a vapor a gênese da Revolução Industrial ou, então, que teria sido a descoberta da linha de montagem por Ford a causa do fordismo. Tal concepção ignora que a descoberta da máquina a vapor ocorreu no momento em que a existência de um mercado mundial suficientemente amplo e organizado, historicamente inédito, se articulou à presença de massas de trabalhadores expulsas do campo e dispostas a trocar sua força-de-trabalho por salários. Foi o desenvolvimento das relações capitalistas em escala planetária e, mais imediatamente na Inglaterra, que tornou possível e necessária a transição da manufatura à indústria. Foi neste momento que a máquina a vapor tornou-se útil e foi desenvolvida.[3] As causas da Revolução Industrial não coincidem com a descoberta da máquina a vapor: são a ela anteriores. Marx, no Livro I de O capital, comenta que o desenvolvimento meramente tecnológico de fontes de energia eólica e animal ou até mesmo o aparecimento de “máquinas” no período manufatureiro
O mesmo pode ser dito da linha de montagem primeiro utilizada por Ford na fabricação do Modelo T. Ela surgiu em um momento de expansão do capitalismo estadunidense que tornava possível e necessária a conversão do mercado em direção ao consumo de massas. Coincidiu, ainda, com a crise de 1920-22 que colocou milhares de trabalhadores na rua (Leite, 1989, p. 67). A linha de montagem é consequência, e não causa primeira, da evolução do capitalismo monopolista em direção ao binômio/Estado de Bem-Estar.
Se nos detivermos no desenvolvimento econômico de todo o século XX, este fato é ainda mais evidente. Há algum setor econômico, da moda à indústria bélica, do cinema à medicina, que não tenha nas necessidades de reprodução do capital o motor predominante do desenvolvimento tecnológico? Não é o enorme desenvolvimento do complexo industrial militar, e do asfixiante peso da guerra no século XX, uma indicação precisa de como é o capital que move a técnica, e não o contrário?[5] Hoje, tantas décadas após um Mallet, e já anos suficientes após um Schaff, Negri ou Lojkine, o desenvolvimento tecnológico elogiado por eles conduziu a qualquer coisa que não seja à reprodução das relações capitalistas de produção? A nossa história mais recente não é testemunha do fato de que cada modo de produção desenvolve técnicas necessárias à sua própria reprodução e, portanto, que entre a técnica e as relações de produção, o momento predominante [übergreifendes Moment] cabe a estas últimas? A evolução tecnológica contemporânea não é mais uma evidência de que qualquer “desenvolvimento da força produtiva do trabalho” se destina a “baratear mercadorias e a encurtar a parte da jornada de trabalho que o trabalhador precisa para si mesmo, a fim de encompridar a outra parte da sua jornada de trabalho que ele dá de graça para o capitalista”? Não é a tecnologia “meio para a produção (Mittel zur Produktion) de mais-valia”? (Marx, 1985, p. 7; Marx, 1975, p. 391)[6]
Vale relembrar ainda as duras críticas de Marx aos “apologistas” do capital que argumentam que o desemprego e a miséria dos trabalhadores seriam exigências inerentes à própria maquinaria.
O momento predominante [übergreifendes Moment] não se localiza na técnica, mas nas relações sociais que a determinam.
De uma outra perspectiva, tal fato é atestado pelas investigações empíricas mais recentes acerca da evolução das relações de produção via-à-vis às novas tecnologias. Kumar, por exemplo, após análise de vários teóricos que postulam a tese segundo a qual o pós-fordismo seria, de algum modo, pós-capitalista, lembra que
Quando não se propõem a generalizações de difícil sustentação, até mesmo os estudos que se aproximam da mainstream da sociologia contemporânea são, também, ricos em indícios desta complexa subordinação da tecnologia às relações de produção. Afirma Ruy Quadros Carvalho, por exemplo, sobre os impactos das novas tecnologias na indústria automobilística no Brasil:
Ao investigar o seu impacto sobre a divisão sexual do trabalho, Helena Hirata constata que “A divisão sexual do trabalho não parece (...) evoluir no mesmo diapasão que a história da tecnologia, mas ser submetida a um peso histórico que torna possível apenas o deslocamento das fronteiras do feminino e do masculino, jamais a supressão da própria divisão sexual”. (Hirata, 2002, p. 218) Citando vários estudos sociológicos e antropológicos, em países e em períodos de tempo bastante distintos, Hirata demonstra com muita pertinência que as “relações de poder e de autoridade” (Hirata, 2002, p. 218) predominantes na sociedade predominam também na esfera de produção apesar das pretensas potencialidades das novas tecnologias em superar esta situação. (Hirata, 2002, p. 216 e ss.) Argumenta, com bases nestas investigações, que
Tem toda razão a autora ao defender a tese de que a divisão sexual do trabalho não é fundada pela especificidade das tarefas ou dos processos de trabalho enquanto tais, mas sim pelas “exigências do sistema produtivo em cada período histórico” (Hirata, 2002, p. 268), do mesmo modo pelo qual a divisão entre o trabalho manual e intelectual, e sua oposição “como inimigos”, não decorre de uma mera divisão técnica do trabalho, gender blind (para utilizar a expressão de Hirata) ou class blind (acrescentamos nós). Tal como a divisão sexual do trabalho decorre da propriedade privada e do patriarcalismo por ela fundado, a divisão entre o trabalho manual e o trabalho intelectual decorre da divisão da sociedade em classes; e a sua “separação” até se “oporem como inimigos” — nos termos marxianos — se explicita plenamente ao atingirmos o modo de produção capitalista desenvolvido. As “formas” da divisão sexual e da oposição entre o trabalho manual e o intelectual próprias a diferentes tecnologias podem alterar apenas o modo de se apresentar — jamais a essência — destas determinações ontológicas da socialidade baseada na exploração do homem pelo homem. Retomemos Kumar, ainda que não possamos acompanhá-lo na aproximação a Rorty que propõe. Ao criticar as teorias da “sociedade de informação”, afirma que
E, ainda, não há qualquer indício de que o computador restabeleceria “o controle humano sobre a produção”, como postularam [Michael] Piore e [Charles] Sabel. (Kumar, 1997, p. 59) A investigação de Ruy de Quadros Carvalho é uma importante fonte de informações acerca da relação entre as novas tecnologias, baseadas em microprocessadores, e o controle da força de trabalho. Realizada no início da década de 1980, a pesquisa tinha a preocupação de identificar as características do que lhe parecia ser, naquele momento, a transição das indústrias no Brasil a um novo patamar de produção, talvez na esteira do que, então, propunha [Benjamin] Coriat. Mesmo naquele momento em que a entrada das novas tecnologias e estratégias gerenciais era uma relativa novidade, ele já constatava que, no interior das indústrias automobilísticas, havia uma intensa conexão entre as novas formas de se produzir e o controle do trabalho operário. Descrevendo a introdução dos robôs, por exemplo, Carvalho assinala que:
Após descrever a nova linha de montagem, continua Carvalho:
Desse modo,
Não apenas se “trabalha mais intensamente”, como
Este e outros estudos indicam que, tal como em Marx, também hoje a “oposição como inimigos” de classe entre o trabalho manual e o trabalho intelectual tem seu fundamento no fato de que o trabalho intelectual consubstancia o controle da classe dominante sobre os trabalhadores manuais e, nos nossos dias, do capital sobre o trabalho. O fato de que este ou aquele operário, nesta ou naquela posição de uma dada fábrica, ser obrigado pelas novas tecnologias a ser “flexível” e a cumprir inclusive atividades como as de controle de qualidade, não altera sequer um átomo desta situação ontológica de fundo: o operário assume as novas tarefas, digamos, não manuais, porque obrigado pelo capital. Além de sua função específica de há alguns anos, agora, sem sequer receber a mais por isso, executa também outras funções que, antes, eram destinadas aos “feitores”, “chefes de oficina”, “mestres”, “controladores”, etc. Esta transformação, ao invés de ser um sinal de emancipação do trabalho, é rigorosamente o oposto: uma forma ainda mais bárbara de exploração do trabalho pelo capital.
Do ponto de vista empírico, não há qualquer indício significativo de que a técnica seria predominante [übergreifendes] no desenvolvimento das relações de produção — nem no passado, nem no presente. Nada indica que o mero desenvolvimento de tecnologia estaria hoje em dia varrendo as relações capitalistas de produção para a lata de lixo da história, abolindo as classes sociais ou dissolvendo a contradição antagônica proletariado/burguesia em uma mais ampla contradição entre a condição assalariada versus capital.
Além de não contar a seu favor qualquer indício histórico ou empírico significativo, vale lembrar que a tese segundo a qual o desenvolvimento da técnica seria a causa determinante da história não é nova. Já na passagem do século XIX ao século XX ganhou força no interior da II Internacional a concepção de que a humanidade teria passado do modo de produção primitivo ao modo de produção asiático ou escravista e, deste último, ao feudalismo e ao capitalismo, graças ao desenvolvimento de novas tecnologias que teriam tornado anacrônicas as relações de produção existentes a cada momento.
Tal como estas teses não são recentes, também são antigas as réplicas a elas. Na década de 1920, as críticas de Lukács à Teoria do materialismo histórico de [Nicolai] Bukharin recolocaram o problema em seus devidos termos. Para o jovem Lukács, o fundamento de tais teses é uma concepção de objetividade social muito próxima ao “materialismo burguês”, que cancela o fato de que “todos os fenômenos econômicos ou ‘sociológicos’ derivam das relações sociais entre os homens”. (Lukács, 1974, p. 43-4) O que o autor húngaro quer dizer é que a técnica apenas pode se substanciar em meios de trabalho (ferramentas, máquinas, etc.) Enquanto meios de trabalho, a técnica comparece como mediação entre o homem e o seu objeto de trabalho (natureza ou matéria-prima, a natureza transformada, lembremos do Capítulo V acima). Se a técnica fosse a causa determinante da história, então as relações de produção seriam decorrências dos meios de trabalho, das ferramentas, máquinas, prédios, canais etc. (Marx, 1983, p. 151) Não seriam mais os homens que se organizam em sociedade para converter a natureza nos valores de uso dos quais necessitam mas, pelo contrário, seriam os meios de trabalho que organizariam o intercâmbio homem/natureza. As “relações sociais entre os homens”, nesta concepção, passam a ser decorrência dos meios de trabalho.
Esta tese possui duas grandes fragilidades. A primeira é que conduz a complicações teóricas rigorosamente insolúveis. Por exemplo: se for o desenvolvimento técnico a causa determinante do desenvolvimento histórico, qual o fundamento do próprio desenvolvimento da tecnologia? Basta colocar esta pergunta para que, na enorme maioria dos autores, seja imediatamente revogada a prioridade da tecnologia em nome de uma prioridade da ciência. Seria o desenvolvimento científico que moveria o desenvolvimento tecnológico que, por sua vez, determinaria o desenvolvimento histórico. Não são poucos, entre os autores que estudamos, os que se referem a uma “revolução técnico-científica” ou expressões do gênero. Deslocar da técnica para a ciência a causa primeira do desenvolvimento humano não faz mais do que deslocar a dificuldade. Pois, se a ciência, e não mais a tecnologia deve ser considerada a causa determinante do desenvolvimento histórico, qual seria o fundamento do desenvolvimento da própria ciência? Certamente não “relações sociais entre os homens”, já que estas seriam determinadas pela ciência com a mediação da técnica. Ainda que não se queira, esta fundação da história a partir do desenvolvimento tecnológico conduz a uma exterioridade e neutralidade da ciência (e, por consequência, da técnica) em relações às lutas de classes, em relação às “relações sociais entre os homens”, muito próximas ao positivismo. A ciência bastar-se-ia a si própria. Esta, segundo Lukács em seu texto de juventude, é a questão de fundo: o equívoco de Bukharin está em desconhecer que a ciência e a tecnologia são decorrentes do desenvolvimento das forças produtivas e, não, causas determinantes deste mesmo desenvolvimento. Ao dissociar o desenvolvimento da ciência e da técnica do complexo das forças produtivas, e ao elevar a técnica à causa determinante do desenvolvimento histórico, subordina-se toda a história a uma “objetividade” e “neutralidade” científica e tecnológica muito próxima, repetimos, ao positivismo. Nesse preciso sentido,
Em seu últimos trabalhos Lukács desenvolve e aprofunda esta sua posição. Não há qualquer possibilidade, no contexto categorial da Ontologia, de um meio de produção (mera mediação, trabalho morto) entre o homem e a natureza, converter-se em causa determinante do desenvolvimento histórico. Em uma rica e sofisticada argumentação, que não podemos senão resumir rapidamente neste momento,[7] demonstra como as novas necessidades e possibilidades geradas pelo trabalho (intercâmbio orgânico com a natureza) tendem a ter um peso maior na história do que as necessidades e possibilidades geradas nos outros complexos sociais. Um novo fato econômico, por isso, tendo a ter repercussões mais profundas, intensas e duradouras sobre o desenvolvimento histórico do que os fatos das outras esferas como a linguagem, a alimentação, a educação, a política etc.[8] Isto faz com que, na relação entre a economia e a totalidade social, caiba à economia o momento predominante [übergreifendes Moment]. Contudo, ao responder às possibilidades e necessidades postas prioritariamente pela economia, a totalidade social transfere aos outros complexos parciais os fatos primordialmente econômicos. E, dado que reside na economia o momento fundante da sociabilidade (o trabalho), ao ser a mediação entre os fatos econômicos e os outros complexos parciais, a totalidade social termina cumprindo a função de momento predominante [übergreifendes Moment] frente a cada complexo parcial dela partícipe. Em outras palavras, Lukács demonstra como há em Marx um complexo de determinações que se interpenetram e que, a cada momento, assumem novas configurações. Um momento é a relação entre a totalidade e cada complexo parcial. Nele, a totalidade é o momento predominante [übergreifendes Moment] no desenvolvimento de cada complexo social porque é a mediação entre a esfera da economia (que inclui o momento fundante de toda e qualquer formação social, o trabalho) e cada um dos complexos parciais. O segundo momento é a relação entre a totalidade social e o complexo da economia. Neste, cabe à economia o momento predominante [übergreifendes Moment] porque, para sermos brevíssimos, nela reside o momento fundante de toda socialidade: a conversão da natureza nos valores de uso indispensáveis à reprodução social.
Não apenas desta estrutura categorial está excluída a possibilidade de uma única e exclusiva causa de qualquer fenômeno social, como ainda não há qualquer possibilidade de esta causa única residir na técnica (nos meios de trabalho) ou na ciência. Em todo processo histórico há sempre e necessariamente um momento predominante [übergreifendes Moment], mas isto é completamente distinto de qualquer causa determinante única.
Uma última observação: uma concepção mais superficial poderia imaginar que da centralidade ontológica do trabalho para o mundo dos homens decorreria necessariamente a prioridade da técnica sobre as relações de produção. Para evitar mal-entendido, é necessário que nos detenhamos, ainda que rapidamente, também sobre esse aspecto da questão.
A centralidade ontológica do trabalho, tal como descoberta por Marx e explorada por Lukács em sua Ontologia, é o fundamento ontológico da prioridade das relações de produção sobre a técnica. Esta nada mais é que o desenvolvimento dos meios de produção, e eles são sempre os meios de produção de um dado intercâmbio dos homens com a natureza, intercâmbio este cuja forma histórica mais geral são os modos de produção propriamente ditos. Cada modo de produção desenvolve os meios de produção que necessita para se reproduzir enquanto tal e, correspondentemente, impede o desenvolvimento dos meios de produção que entram em choque com a sua essência. O escravismo não possibilitou o desenvolvimento das máquinas a não ser para a guerra, esta era uma determinação histórica insuperável das relações de produção escravistas. Analogamente, o feudalismo conheceu um desenvolvimento técnico muito mais acelerado que o escravismo e o modo de produção asiático porque as relações de produção feudais assim o possibilitaram. Não foi o desenvolvimento técnico que levou a derrocada do escravismo e, depois, ao surgimento do feudalismo; do mesmo modo como não foi o desenvolvimento tecnológico que levou a sociedade europeia do feudalismo ao capitalismo (e, as sociedades da América, Ásia e África, dos seus modos pré-capitalistas de produção ao capitalismo). Foi o surgimento de um novo modo de produção, com novas possibilidades de desenvolvimento para as relações de produção e, portanto, para a relação do homem com a natureza, que tornou possível e necessário o aparecimento das novas tecnologias. Não há, por isso, qualquer contradição entre se afirmar a validade da tese marxiana do trabalho enquanto categoria fundante do mundo dos homens e o predomínio ontológico das relações de produção sobre o desenvolvimento tecnológico. Muito pelo contrário, entre a prioridade ontológica do trabalho e o momento predominante [übergreifendes Moment] das relações sociais sobre o desenvolvimento da tecnologia há uma rigorosa articulação categorial.
Entre a argumentação de Lukács em 1920 e a da Ontologia contra as posições tipificadas pelo texto de Bukharin há um desenvolvimento evidente. E, neste particular,[9] a continuidade entre o Lukács de 1920 e o de 1960 evidencia-se ainda pelo fato de que os mesmos argumentos históricos são mencionados: nem na transição do escravismo romano ao feudalismo, nem na transição do feudalismo ao capitalismo, a técnica pôde ser identificada como causa determinante.[10]
E, argumentando que certamente há uma influência do desenvolvimento da técnica no próprio desenvolvimento econômico, argumenta que “(...) esta interação recíproca de modo algum supera a real primazia histórica e metodológica da economia em relação à técnica”. (Lukács, 1974, p. 46)
Deixamos de expor, por uma questão de espaço, as análises feitas por Lukács das conhecidas passagens de Marx em Trabalho assalariado e capital e em Miséria da filosofia. Delas o filósofo húngaro retira novos elementos contra Bukharin e as concepções da técnica como causa determinante da história dos homens.[11]
Dos autores que examinamos, há dois campos distintos entre aqueles que defendem ser o desenvolvimento das novas tecnologias (a revolução técnico-científica em suas várias versões) o fundamento da desaparição do proletariado. Alguns argumentam que estaríamos vivendo a superação do capitalismo. Postular que o desenvolvimento tecnológico promovido pelo capital seria a este antagônico e que, por isso, conteria nele próprio a possibilidade de superação histórica da sociabilidade contemporânea significa partilhar de duas ilusões. A primeira, que a contraditoriedade do capitalismo seria tal que dele poderia linearmente surgir sua superação; que o capitalismo poderia se converter em outro modo de produção (pós-capitalista, pós-mercantil, socialista, comunista etc.) sem qualquer quebra da sua continuidade pela gênese revolucionária de uma nova essência da reprodução social. Ao tratar-se da conversão do capitalismo em socialismo, por exemplo, a substituição do tempo de trabalho socialmente necessário por um tempo disponível como essência da reprodução social[12] teria a marca da continuidade do desenvolvimento técnico sob a regência do capital, o que significa uma retomada das teses reformistas da II Internacional antes da Primeira Grande Guerra.
Postular que o desenvolvimento da técnica conduziria ao socialismo significa, ainda, compartilhar de uma segunda ilusão. A de que o desenvolvimento da tecnologia capitalista se contraporia à reprodução da propriedade privada burguesa.
São estas duas ilusões que servem de pressupostos às teses que, de Mallet a Negri, de Daniel Bell a Schaff, afirmam que o desenvolvimento tecnológico nos levaria pra além do capitalismo, pouco importando aqui se este além do capitalismo seria o socialismo, o comunismo de Negri, uma sociabilidade pós-mercantil ou pós-industrial, uma sociedade informática etc.
Há, todavia, entre os autores que concedem prioridade à técnica na explicação das transformações que estamos vivendo muitos que não compartilham destas ilusões. Argumentam que não estaríamos superando o capitalismo, que as transformações em curso intensificam a exploração do trabalho e, não, a superam. Contudo, postulam que o surgimento das novas tecnologias teria alterado a essência das classes sociais, de tal modo que o proletariado teria se dissolvido entre os assalariados ou entre a classe média. Entre nós, os exemplos mais marcantes são Antunes e Iamamoto, longe evidentemente de serem os únicos. Com todas s significativas e importantes diferenças que mantêm frente a autores como Negri, Schaff, Lojkine etc., confluem para uma concepção comum a todos eles: a de que a técnica seria a causa determinante das transformações societárias ao final do século XX. Ainda que dirigida contra [Anthony] Giddens, a observação de [Flávio] Aguiar é precisa:
Este “fetichismo” da técnica (Lukács, 1974, p. 44), repetimos, não é uma criação recente nem uma originalidade do debate contemporâneo. Pelo contrário, como muitas das suas principais teses, também essa determinação da história pela técnica é um revival de antigas teses. Nenhum, dos autores analisados, avoca para si a tradição de um Bukharin ou do marxismo da II Internacional, ainda que compartilhem de concepções semelhantes.
Há, todavia, nesse debate do papel histórico da tecnologia uma particularidade curiosa. A aproximação às teses reformistas da II Internacional de autores que consideram o desenvolvimento da tecnologia a causa determinante do desenvolvimento social também pode resultar de uma perspectiva em tudo diversa. Se, para tais autores, a tecnologia seria neutra em relação ao conflitos de classe de tal modo que seu desenvolvimento conduziria à superação do capitalismo, para outros autores o desenvolvimento da tecnologia também poderia ser o espaço da superação do capitalismo — mas pela razão justamente oposta. Para eles a técnica é uma relação imediatamente política, uma decorrência direta das relações de poder na sociedade. Em sendo política, a tecnologia passa a ser concebida como um campo de disputa entre os trabalhadores e o capital e a luta pelo controle da produção (e não mais, para retomar Marx de Trabalho, preço e lucro, pela “abolição do sistema do trabalho assalariado” (Marx, 1977, p. 378) passaria a ser ponto nodal da transformação da sociedade capitalista.
Um bom exemplo entre nós é o texto de Márcia de Paula Leite, O futuro do trabalho (Leite, 1989), relatório de uma pesquisa que realizou nos dois anos anteriores em duas fábricas paulistas. Seu ponto de partida é uma definição de técnica como uma “relação de força” entre os “grupos sociais envolvidos” (Leite, 1989, p. 26; tb. p. 39). Desse postulado inicial, ela conclui que a análise deve ser feita “não apenas a partir dos elementos econômicos”, mas também dos “aspectos políticos relacionados à questão da dominação dos produtores e da disputa pelo poder no interior dos estabelecimentos produtivos”. (Leite, 1989, p. 36) Aqui, opera-se a primeira redução importante: a relação de dominação na produção é tratada como uma questão “política”. Por questão política entende-se a “disputa travada cotidianamente” entre os “empregadores” que querem aumentar a produtividade e os trabalhadores que buscam o “controle do processo de trabalho” (Leite, 1989, p. 26), em uma formulação que não deixa de lembrar as teses de Mallet acerca do que ele entendia ser o novo objetivo de luta da nova classe operária: o controle da produção.
Como a luta política tem um necessário componente subjetivo, a “preocupação central” de seu livro será a “percepção” dos trabalhadores acerca das novas tecnologias, de modo a colocar em relevo
Estaria nas “representações”, nas “imagens” dos trabalhadores, na “internalização subjetiva de suas condições de existência” (Leite, 1989, p. 30) a explicação de seu comportamento cotidiano.
Se, antes, a ‘relação de força” que seria a tecnologia tinha um componente político essencial (a dominação na produção era identificada à dominação política), agora a política é descartada, dando-se ênfase à vida cotidiana e à “internalização subjetiva” das “condições de existência”. (Leite, 1989, p. 30) Esta é uma passagem bastante problemática, mesmo no horizonte teórico de Leite. Pois, se o comportamento cotidiano dos trabalhadores será explicado através das suas “representações” e “imagens” e se estas não mais serão imediatamente políticas, quando se tratar da dominação nos locais de trabalho, qual o tipo de dominação que resta? Tendo afirmado a identidade entre a exploração econômica e a política, retirada a política, qual o tipo de dominação poderia ainda haver para Leite na vida cotidiana dos trabalhadores nos locais de produção?
O texto remete então a [E. P.] Thompson e a Agnes Heller de Para mudar a vida. Para postular uma tese ainda mais problemática:
Estaria a autora querendo afirmar uma identidade sujeito-objeto próxima a Hegel? Ou simplesmente migrando para o idealismo subjetivo? O texto é confuso e não fornece respostas a estas questões. Não parece ter a autora consciência das implicações teóricas aqui envolvidas. Agora que o subjetivo virou objetivo (e vice-versa), trata-se de reduzir as classes sociais às suas experiências empíricas imediatas, entendidas “menos” pelos “aspectos políticos” ou pelas “condições materiais de vida” (Leite, 1989, p. 30) e mais pelas suas “imagens” e “representações” que expressariam a “internalização subjetiva de suas condições de existência”. (Leite, 1989, p. 30)
Neste momento do seu raciocínio, Leite não tem mais como evitar o confronto aberto com as teses de Marx. E o faz de uma forma pouco fiel ao autor alemão: a tese de Marx de que as classe seriam determinadas pelo lugar dos indivíduos na estrutura produtiva da sociedade é caracterizada como sendo incapaz de pensar a historicidade e evolução das classes sociais. Quem já se deu ao trabalho de ao menos folhear o 18 brumário de Luis Bonaparte — para não mencionar o volume I de O capital — sabe que o autor alemão demonstra ser esta relação com estrutura produtiva da sociedade o fundamento ontológico da fantástica plasticidade das classes sociais em cada conjuntura da história. Para Leite, todavia,
Ou seja, para se “pensar” a classe social como uma “categoria histórica em constante evolução e transformação” “que se vai constituindo e se formando no próprio processo de lutas”, é “necessário ter-se em conta a dimensão ao mesmo tempo individual e coletiva desse processo”. Quem poderia discordar de tal tese? Contudo, ela está associada ao fundamental da concepção de mundo de Leite, qual seja, “pensar” as classes sociais “a partir do lugar que os indivíduos ocupam no processo de produção, à qual corresponderiam necessariamente determinados interesses e, portanto, uma determinada consciência”, seria conceber a classe social como uma “categoria estática”.
Pois bem, para argumentarmos, cancelemos a determinação ontológica das classes sociais a partir do local que ocupam na estrutura produtiva. Agora elas não mais se distinguiriam por “determinados interesses” oriundos “do lugar que os indivíduos ocupam no processo de produção”, mas sim, “pela internalização subjetiva de suas condições de existência”. Tais “condições de existência”, claro está, não mais podem se relacionar com a estrutura produtiva da sociedade. O que, então, seriam elas? As “representações” e o “imaginário” dos trabalhadores? E seriam representações, e comporiam um imaginário, acerca de quê? Retirado o fundamento ontológico consubstanciado pelo lugar que ocupam na estrutura produtiva, de onde viria o constante processo de transformação das classes sociais? Qual o seu fundamento? De onde surgiria a “constante evolução e transformação” das classes sociais, tanto do ponto de vista dos indivíduos que as compõem como também da coletividade que são?
O texto não dá uma resposta cabal a estas questões, mas esclarece que
Pronto: “história aberta” significa, primeiro, reduzir o marxismo a uma concepção teleológica da história. Em seguida, adotar como critério de avaliação “práticas” as representações e o imaginário da vida cotidiana dos operários das duas fábricas paulistas que ela examina. E, como, nestas fábricas, pôde constatar que a revolução não estava na ordem do dia, conclui que os operários não seriam a classe revolucionária. Fazer uma dedução acerca do papel histórico de uma classe generalizando-se os resultados de uma pesquisa em apenas duas fábricas paulistas, operando tal generalização sem qualquer consideração para com o momento histórico contrarrevolucionário em que vivemos, é um procedimento metodológico por demais questionável, para dizer o mínimo.
Além deste problema, as concepções mal resolvidas da autora acerca da relação entre objetividade e subjetividade, que acima mencionamos, terminam cobrando o seu preço. Ao final, seu texto flutua entre duas diferentes concepções acerca da “evolução e desenvolvimento” da sociedade. Em alguns momentos, por exemplo, somos ditos que “a raiz da crise” do fordismo estaria na subjetividade e na resistência operárias. (Leite, 1989, p. 80) Poucas páginas depois, as coisas já não seriam mais assim. A crise do fordismo teria origem na esfera intrinsecamente produtiva (“diminuição dos ganhos de produtividade, redução do poder de compra dos mercados, elitização do consumo e incremento da competição intercapitalista mundial” (Leite, 1989, p. 83; 84). A ambiguidade da concepção da autora termina colocando-a nesta difícil posição de explicar o mesmo fenômeno social de causas inteiramente distintas.
O que interessa, todavia, para nosso estudo, é o que o texto de Leite tem de típico de uma postura comum na sociologia do trabalho: a tese de que as relações de produção seriam “políticas”, por isto entendendo-se um campo de disputa entre atores sociais com interesses distintos[13]. Esta é uma tese aparentemente muito à esquerda daquelas concepções que tomam as relações de produção como decorrências diretas e inevitáveis da tecnologia. Todavia, bem pesadas as coisas, esta aparência é enganosa, principalmente quando se trata da determinação das classes sociais e, em particular, das peculiaridades do proletariado. Por serem “campos de disputas”, por serem “políticas”, as relações de produção capitalistas evoluiriam segundo a correlação de forças a cada momento. Assim, com a devida pressão operária, as relações de produção capitalistas poderiam incorporar demandas dos trabalhadores de tal modo que a superação revolucionária do modo de produção capitalista é substituída pela evolução das relações de produção graças à pressão dos trabalhadores. A luta no interior da fábrica, mais diretamente sindical do que política, seria assim o locus estratégico da perspectiva operária e, correspondentemente, a revolução que aboliria o sistema do trabalho assalariado é reduzida a um desprezível projeto teleológico-autoritário. A grande e fatal ilusão desta tese é imaginar que, sem a revolução, a pressão operária sobre o desenvolvimento da tecnologia, uma pressão efetiva e real, possa resultar em algo diferente do que mais e mais tecnologia capitalista. Na luta sindical (bem como no Estado) o máximo que o trabalhador pode conseguir é representar-se como trabalhador abstrato, isto é, como o simétrico do capital. Para constituir-se enquanto sua negação histórica e, nesta esfera de conflitos, o campo resolutivo não está na disputa ao redor da tecnologia empregada nas empresas capitalistas.
De um modo inesperado, portanto, a tese de que as relações de produção seriam “políticas” termina em um resultado bastante semelhante àquelas teses que reduzem o desenvolvimento das relações de produção à evolução da tecnologia: em ambos as teses, é na esfera da tecnologia que se determinam as relações de produção e, portanto, as classes sociais. Em ambas o horizonte revolucionário é perdido, seja porque teria sido o desenvolvimento espontâneo, automático, da tecnologia a causa determinante da história, seja porque é na esfera da tecnologia que a pressão “política” dos trabalhadores desenvolverá as mediações decisivas para a transição do modo de produção capitalista ao socialismo.
Perguntamos, no início do capítulo, qual das teorizações que examinamos seria capaz de substituir a Marx, caso esta substituição fosse necessária. Podemos, agora, dar uma primeira resposta parcial a esta questão levando-se em conta o amplo campo de autores que conferem papel determinante ou preponderante à tecnologia, para que qualquer um deles pudesse substituir as categorias marxianas na análise do trabalho e das classes sociais, teria que demonstrar como, na relação entre modos de produção e técnica, caberia a esta o momento predominante [übergreifendes Moment]. E que, portanto, há história do capitalismo, seria o desenvolvimento da técnica que fundaria a possibilidade de superação da relações de produção capitalista e, não, o inverso. Isto está muito longe de ter sido realizado pelos autores que consideramos. Como argumentos, tomam por garantidos pressupostos que não demonstram, e são, por isso, sob este aspecto, teoricamente débeis, instáveis.
Tal como a versão logicizada da identidade da identidade com a não identidade de Hegel (ou sua fórmula esterilizada da negação da negação do marxismo vulgar) é capaz de converter a água em vinho,[2] a tecnologia produzida sob as relações de produção capitalistas teria poderes mágicos capazes de reverter o próprio modo de produção que está em sua origem. (Kumar, 1997, p. 49) Como seria isto possível?
Nenhum dos autores que analisamos sequer considera o problema. Tomam como seguro e comprovado que o desenvolvimento tecnológico é o que determinaria o desenvolvimento histórico. Tal concepção condiz com uma versão banalizada da história do capitalismo segundo a qual, por exemplo, teria sido a descoberta da máquina a vapor a gênese da Revolução Industrial ou, então, que teria sido a descoberta da linha de montagem por Ford a causa do fordismo. Tal concepção ignora que a descoberta da máquina a vapor ocorreu no momento em que a existência de um mercado mundial suficientemente amplo e organizado, historicamente inédito, se articulou à presença de massas de trabalhadores expulsas do campo e dispostas a trocar sua força-de-trabalho por salários. Foi o desenvolvimento das relações capitalistas em escala planetária e, mais imediatamente na Inglaterra, que tornou possível e necessária a transição da manufatura à indústria. Foi neste momento que a máquina a vapor tornou-se útil e foi desenvolvida.[3] As causas da Revolução Industrial não coincidem com a descoberta da máquina a vapor: são a ela anteriores. Marx, no Livro I de O capital, comenta que o desenvolvimento meramente tecnológico de fontes de energia eólica e animal ou até mesmo o aparecimento de “máquinas” no período manufatureiro
não
revoluciona[ra]m o modo de produção. A própria máquina a vapor como foi
inventada no final do século XVII, durante o período manufatureiro, e
continuou a existir até o começo dos anos 80 do século XVIII, não
acarretou nenhuma revolução industrial. (Marx, 1983, p. 10)[4]
O mesmo pode ser dito da linha de montagem primeiro utilizada por Ford na fabricação do Modelo T. Ela surgiu em um momento de expansão do capitalismo estadunidense que tornava possível e necessária a conversão do mercado em direção ao consumo de massas. Coincidiu, ainda, com a crise de 1920-22 que colocou milhares de trabalhadores na rua (Leite, 1989, p. 67). A linha de montagem é consequência, e não causa primeira, da evolução do capitalismo monopolista em direção ao binômio/Estado de Bem-Estar.
Se nos detivermos no desenvolvimento econômico de todo o século XX, este fato é ainda mais evidente. Há algum setor econômico, da moda à indústria bélica, do cinema à medicina, que não tenha nas necessidades de reprodução do capital o motor predominante do desenvolvimento tecnológico? Não é o enorme desenvolvimento do complexo industrial militar, e do asfixiante peso da guerra no século XX, uma indicação precisa de como é o capital que move a técnica, e não o contrário?[5] Hoje, tantas décadas após um Mallet, e já anos suficientes após um Schaff, Negri ou Lojkine, o desenvolvimento tecnológico elogiado por eles conduziu a qualquer coisa que não seja à reprodução das relações capitalistas de produção? A nossa história mais recente não é testemunha do fato de que cada modo de produção desenvolve técnicas necessárias à sua própria reprodução e, portanto, que entre a técnica e as relações de produção, o momento predominante [übergreifendes Moment] cabe a estas últimas? A evolução tecnológica contemporânea não é mais uma evidência de que qualquer “desenvolvimento da força produtiva do trabalho” se destina a “baratear mercadorias e a encurtar a parte da jornada de trabalho que o trabalhador precisa para si mesmo, a fim de encompridar a outra parte da sua jornada de trabalho que ele dá de graça para o capitalista”? Não é a tecnologia “meio para a produção (Mittel zur Produktion) de mais-valia”? (Marx, 1985, p. 7; Marx, 1975, p. 391)[6]
Vale relembrar ainda as duras críticas de Marx aos “apologistas” do capital que argumentam que o desemprego e a miséria dos trabalhadores seriam exigências inerentes à própria maquinaria.
As
contradições e os antagonismos inseparáveis da utilização capitalista
da maquinaria não existem porque decorrem da própria maquinaria, mas de
sua utilização capitalista. (Marx, 1983, p. 55-6)
O momento predominante [übergreifendes Moment] não se localiza na técnica, mas nas relações sociais que a determinam.
(...)
considerada em-si[,] a maquinaria encurta o tempo de trabalho, enquanto
utilizada como capital aumenta a jornada de trabalho; em si, facilita o
trabalho, utilizada como capital aumenta sua intensidade; em si, é uma
vitória do homem sobre a força da Natureza, utilizada como capital
submete o homem por meio da força da Natureza; em si, aumenta a riqueza
do produtor, utilizada como capital o pauperiza etc. (Marx, 1983, p.
55-6)
De uma outra perspectiva, tal fato é atestado pelas investigações empíricas mais recentes acerca da evolução das relações de produção via-à-vis às novas tecnologias. Kumar, por exemplo, após análise de vários teóricos que postulam a tese segundo a qual o pós-fordismo seria, de algum modo, pós-capitalista, lembra que
o
capitalismo pós-fordista é, ainda, afinal de contas, capitalismo. É
impulsionado hoje e sempre pelo motor do processo de acumulação. A
reestruturação implícita no pós-fordismo tem a intenção de fortalecer, e
não enfraquecer o capitalismo. (Kumar, 1997, p. 62; vf. tb. p. 164)
Quando não se propõem a generalizações de difícil sustentação, até mesmo os estudos que se aproximam da mainstream da sociologia contemporânea são, também, ricos em indícios desta complexa subordinação da tecnologia às relações de produção. Afirma Ruy Quadros Carvalho, por exemplo, sobre os impactos das novas tecnologias na indústria automobilística no Brasil:
Colocando
estas ideias numa formulação mais abrangente, poderíamos dizer que o
primeiro plano em que o desenvolvimento tecnológico é influenciado pelas
relações de poder entre capital e trabalho é o das políticas públicas
de Ciência e Tecnologia e Desenvolvimento Industrial, onde se define, em
grande parte, no capitalismo contemporâneo, a orientação que tomarão os
programas privados de pesquisa e desenvolvimento e os programas de
incentivo à modernização industrial. (Carvalho, 1987, p. 29)
Ao investigar o seu impacto sobre a divisão sexual do trabalho, Helena Hirata constata que “A divisão sexual do trabalho não parece (...) evoluir no mesmo diapasão que a história da tecnologia, mas ser submetida a um peso histórico que torna possível apenas o deslocamento das fronteiras do feminino e do masculino, jamais a supressão da própria divisão sexual”. (Hirata, 2002, p. 218) Citando vários estudos sociológicos e antropológicos, em países e em períodos de tempo bastante distintos, Hirata demonstra com muita pertinência que as “relações de poder e de autoridade” (Hirata, 2002, p. 218) predominantes na sociedade predominam também na esfera de produção apesar das pretensas potencialidades das novas tecnologias em superar esta situação. (Hirata, 2002, p. 216 e ss.) Argumenta, com bases nestas investigações, que
Partindo
(...) da empresa, assim como da sociologia das organizações e
sociologia industrial, pude ver, cada vez com mais clareza, que a
empresa não é uma entidade isolável, analisável em si, e que uma
abordagem limitada à empresa nos deixava sem nenhuma explicação de uma
série de fenômenos. Daí a necessidade de levar em conta as horas de
trabalho, o trabalho doméstico, as relações homens/mulheres, etc. Por
não integrarem esses elementos, as análises da sociologia das
organizações e da sociologia industrial desembocam, em geral, em
aporias. (Hirata, 2002, p. 247)
Tem toda razão a autora ao defender a tese de que a divisão sexual do trabalho não é fundada pela especificidade das tarefas ou dos processos de trabalho enquanto tais, mas sim pelas “exigências do sistema produtivo em cada período histórico” (Hirata, 2002, p. 268), do mesmo modo pelo qual a divisão entre o trabalho manual e intelectual, e sua oposição “como inimigos”, não decorre de uma mera divisão técnica do trabalho, gender blind (para utilizar a expressão de Hirata) ou class blind (acrescentamos nós). Tal como a divisão sexual do trabalho decorre da propriedade privada e do patriarcalismo por ela fundado, a divisão entre o trabalho manual e o trabalho intelectual decorre da divisão da sociedade em classes; e a sua “separação” até se “oporem como inimigos” — nos termos marxianos — se explicita plenamente ao atingirmos o modo de produção capitalista desenvolvido. As “formas” da divisão sexual e da oposição entre o trabalho manual e o intelectual próprias a diferentes tecnologias podem alterar apenas o modo de se apresentar — jamais a essência — destas determinações ontológicas da socialidade baseada na exploração do homem pelo homem. Retomemos Kumar, ainda que não possamos acompanhá-lo na aproximação a Rorty que propõe. Ao criticar as teorias da “sociedade de informação”, afirma que
A
nova tecnologia (...) está sendo aplicado em uma estrutura política e
econômica que confirma e reforça padrões existentes, ao invés de gerar
outros. O trabalho e o lazer são ainda mais industrializados, ainda mais
submetidos a estratégias fordistas e tayloristas de mecanização,
rotinização e racionalização. As desigualdades sociais existentes são
mantidas e ampliadas. Abre-se um novo ‘hiato de informação’ entre os
produtores e os usuários da nova tecnologia e os que — cidadãos comuns, trabalhadores semiespecializados, países do Terceiro Mundo —
são seus clientes passivos, compradores e consumidores. Há abundância
de informação, mas pouco interesse em corporificá-la em um arcabouço de
conhecimentos, quanto mais cultivar a sabedoria em seu uso. O
conhecimento e a informação, que antes figuravam entre os recursos mais
públicos e mais disponíveis na sociedade, tornaram-se agora
privatizadores, foram transformados em mercadorias, expropriados para
venda e lucro. (Kumar, 1987, p. 44).
E, ainda, não há qualquer indício de que o computador restabeleceria “o controle humano sobre a produção”, como postularam [Michael] Piore e [Charles] Sabel. (Kumar, 1997, p. 59) A investigação de Ruy de Quadros Carvalho é uma importante fonte de informações acerca da relação entre as novas tecnologias, baseadas em microprocessadores, e o controle da força de trabalho. Realizada no início da década de 1980, a pesquisa tinha a preocupação de identificar as características do que lhe parecia ser, naquele momento, a transição das indústrias no Brasil a um novo patamar de produção, talvez na esteira do que, então, propunha [Benjamin] Coriat. Mesmo naquele momento em que a entrada das novas tecnologias e estratégias gerenciais era uma relativa novidade, ele já constatava que, no interior das indústrias automobilísticas, havia uma intensa conexão entre as novas formas de se produzir e o controle do trabalho operário. Descrevendo a introdução dos robôs, por exemplo, Carvalho assinala que:
(...)
foram introduzidos sete robôs de solda a ponto distribuídos nas áreas
de produção dos subconjuntos. Embora a gerência tenha justificado a
introdução dos robôs pela sua superioridade de soldagem em operações que
exigem uma precisão difícil de obter pelo trabalho manual, ficou-nos a
impressão de que sua função principal é marcar o ritmo de trabalho, como
veremos adianta. (Carvalho, 1987, p. 126).
Após descrever a nova linha de montagem, continua Carvalho:
(...) apesar de ocorrerem eventuais atrasos, porque a circulação depende do acionamento manual de todos os botões, basicamente o ritmo de trabalho e de movimentação das máquinas de transferência segue o ritmo dos robôs.
(...) A redução dos postos de trabalho de soldagem de conjuntos
pequenos e a eliminação do trabalho manual nas operações mais difíceis
facilitaram a predeterminação dos tempos de trabalho com maior realismo
(...). (Carvalho, 1987, p. 127 – itálicos no original)
Desse modo,
(...) a adoção da nova tecnologia abriu a oportunidade — aproveitada pelas empresas — de introduzir certos mecanismos na organização da produção que aumentaram significativamente o controle técnico sobre o conteúdo, o ritmo e a intensidade do trabalho,
em detrimento da capacidade dos trabalhadores de produção de influir
sobre o que acontece na fábrica. (...) Efetivamente, a nova organização
do trabalho permite às empresas auferir economias de mão de obra não
apenas relativas à substituição direta de homens por soldadores
automáticos e equipamentos de circulação, mas também relativas ao melhoramento, em múltiplas formas, do aproveitamento do tempo de trabalho (...) dada a ritmação imposta pelas máquinas, e trabalha-se mais intensamente. (...).
Não apenas se “trabalha mais intensamente”, como
(...)
também reduziu sua dependência da força de trabalho para garantir esta
[requerida] qualidade. Todas as operações estratégicas foram
automatizadas (...) [com o] aumento do poder de comando da gerência
sobre o processo produtivo como um todo. Com um fluxo de produção mais
contínuo, sem pontos de estrangulamento, torna-se mais factível fazer
cumprir os planos de produção. (...) O fato é que os novos equipamentos associados aos novos esquemas de organização do trabalho concebidos pelas empresas resultaram no incremento do controle. A configuração concreta que assumiu o novo processo de trabalho (tecnologia mais organização do trabalho) é decorrente de uma opção gerencial orientada pelo objetivo da redução dos custos de mão de obra, via subordinação e intensificação do trabalho. (Carvalho, 1987, p. 130-1 – itálicos no original)
Este e outros estudos indicam que, tal como em Marx, também hoje a “oposição como inimigos” de classe entre o trabalho manual e o trabalho intelectual tem seu fundamento no fato de que o trabalho intelectual consubstancia o controle da classe dominante sobre os trabalhadores manuais e, nos nossos dias, do capital sobre o trabalho. O fato de que este ou aquele operário, nesta ou naquela posição de uma dada fábrica, ser obrigado pelas novas tecnologias a ser “flexível” e a cumprir inclusive atividades como as de controle de qualidade, não altera sequer um átomo desta situação ontológica de fundo: o operário assume as novas tarefas, digamos, não manuais, porque obrigado pelo capital. Além de sua função específica de há alguns anos, agora, sem sequer receber a mais por isso, executa também outras funções que, antes, eram destinadas aos “feitores”, “chefes de oficina”, “mestres”, “controladores”, etc. Esta transformação, ao invés de ser um sinal de emancipação do trabalho, é rigorosamente o oposto: uma forma ainda mais bárbara de exploração do trabalho pelo capital.
Do ponto de vista empírico, não há qualquer indício significativo de que a técnica seria predominante [übergreifendes] no desenvolvimento das relações de produção — nem no passado, nem no presente. Nada indica que o mero desenvolvimento de tecnologia estaria hoje em dia varrendo as relações capitalistas de produção para a lata de lixo da história, abolindo as classes sociais ou dissolvendo a contradição antagônica proletariado/burguesia em uma mais ampla contradição entre a condição assalariada versus capital.
Além de não contar a seu favor qualquer indício histórico ou empírico significativo, vale lembrar que a tese segundo a qual o desenvolvimento da técnica seria a causa determinante da história não é nova. Já na passagem do século XIX ao século XX ganhou força no interior da II Internacional a concepção de que a humanidade teria passado do modo de produção primitivo ao modo de produção asiático ou escravista e, deste último, ao feudalismo e ao capitalismo, graças ao desenvolvimento de novas tecnologias que teriam tornado anacrônicas as relações de produção existentes a cada momento.
Tal como estas teses não são recentes, também são antigas as réplicas a elas. Na década de 1920, as críticas de Lukács à Teoria do materialismo histórico de [Nicolai] Bukharin recolocaram o problema em seus devidos termos. Para o jovem Lukács, o fundamento de tais teses é uma concepção de objetividade social muito próxima ao “materialismo burguês”, que cancela o fato de que “todos os fenômenos econômicos ou ‘sociológicos’ derivam das relações sociais entre os homens”. (Lukács, 1974, p. 43-4) O que o autor húngaro quer dizer é que a técnica apenas pode se substanciar em meios de trabalho (ferramentas, máquinas, etc.) Enquanto meios de trabalho, a técnica comparece como mediação entre o homem e o seu objeto de trabalho (natureza ou matéria-prima, a natureza transformada, lembremos do Capítulo V acima). Se a técnica fosse a causa determinante da história, então as relações de produção seriam decorrências dos meios de trabalho, das ferramentas, máquinas, prédios, canais etc. (Marx, 1983, p. 151) Não seriam mais os homens que se organizam em sociedade para converter a natureza nos valores de uso dos quais necessitam mas, pelo contrário, seriam os meios de trabalho que organizariam o intercâmbio homem/natureza. As “relações sociais entre os homens”, nesta concepção, passam a ser decorrência dos meios de trabalho.
Esta tese possui duas grandes fragilidades. A primeira é que conduz a complicações teóricas rigorosamente insolúveis. Por exemplo: se for o desenvolvimento técnico a causa determinante do desenvolvimento histórico, qual o fundamento do próprio desenvolvimento da tecnologia? Basta colocar esta pergunta para que, na enorme maioria dos autores, seja imediatamente revogada a prioridade da tecnologia em nome de uma prioridade da ciência. Seria o desenvolvimento científico que moveria o desenvolvimento tecnológico que, por sua vez, determinaria o desenvolvimento histórico. Não são poucos, entre os autores que estudamos, os que se referem a uma “revolução técnico-científica” ou expressões do gênero. Deslocar da técnica para a ciência a causa primeira do desenvolvimento humano não faz mais do que deslocar a dificuldade. Pois, se a ciência, e não mais a tecnologia deve ser considerada a causa determinante do desenvolvimento histórico, qual seria o fundamento do desenvolvimento da própria ciência? Certamente não “relações sociais entre os homens”, já que estas seriam determinadas pela ciência com a mediação da técnica. Ainda que não se queira, esta fundação da história a partir do desenvolvimento tecnológico conduz a uma exterioridade e neutralidade da ciência (e, por consequência, da técnica) em relações às lutas de classes, em relação às “relações sociais entre os homens”, muito próximas ao positivismo. A ciência bastar-se-ia a si própria. Esta, segundo Lukács em seu texto de juventude, é a questão de fundo: o equívoco de Bukharin está em desconhecer que a ciência e a tecnologia são decorrentes do desenvolvimento das forças produtivas e, não, causas determinantes deste mesmo desenvolvimento. Ao dissociar o desenvolvimento da ciência e da técnica do complexo das forças produtivas, e ao elevar a técnica à causa determinante do desenvolvimento histórico, subordina-se toda a história a uma “objetividade” e “neutralidade” científica e tecnológica muito próxima, repetimos, ao positivismo. Nesse preciso sentido,
a
técnica como fundamento autossuficiente do desenvolvimento é apenas um
refinamento dinâmico deste naturalismo primitivo. Pois, se a técnica não
é concebida como um momento do sistema de produção existente, se seu
desenvolvimento não é explicado pelo desenvolvimento das forças sociais
de produção (...) termina sendo um princípio como que transcendente, que
se opõe ao homem como uma “natureza”. (Lukács, 1974, p. 45)
Em seu últimos trabalhos Lukács desenvolve e aprofunda esta sua posição. Não há qualquer possibilidade, no contexto categorial da Ontologia, de um meio de produção (mera mediação, trabalho morto) entre o homem e a natureza, converter-se em causa determinante do desenvolvimento histórico. Em uma rica e sofisticada argumentação, que não podemos senão resumir rapidamente neste momento,[7] demonstra como as novas necessidades e possibilidades geradas pelo trabalho (intercâmbio orgânico com a natureza) tendem a ter um peso maior na história do que as necessidades e possibilidades geradas nos outros complexos sociais. Um novo fato econômico, por isso, tendo a ter repercussões mais profundas, intensas e duradouras sobre o desenvolvimento histórico do que os fatos das outras esferas como a linguagem, a alimentação, a educação, a política etc.[8] Isto faz com que, na relação entre a economia e a totalidade social, caiba à economia o momento predominante [übergreifendes Moment]. Contudo, ao responder às possibilidades e necessidades postas prioritariamente pela economia, a totalidade social transfere aos outros complexos parciais os fatos primordialmente econômicos. E, dado que reside na economia o momento fundante da sociabilidade (o trabalho), ao ser a mediação entre os fatos econômicos e os outros complexos parciais, a totalidade social termina cumprindo a função de momento predominante [übergreifendes Moment] frente a cada complexo parcial dela partícipe. Em outras palavras, Lukács demonstra como há em Marx um complexo de determinações que se interpenetram e que, a cada momento, assumem novas configurações. Um momento é a relação entre a totalidade e cada complexo parcial. Nele, a totalidade é o momento predominante [übergreifendes Moment] no desenvolvimento de cada complexo social porque é a mediação entre a esfera da economia (que inclui o momento fundante de toda e qualquer formação social, o trabalho) e cada um dos complexos parciais. O segundo momento é a relação entre a totalidade social e o complexo da economia. Neste, cabe à economia o momento predominante [übergreifendes Moment] porque, para sermos brevíssimos, nela reside o momento fundante de toda socialidade: a conversão da natureza nos valores de uso indispensáveis à reprodução social.
Não apenas desta estrutura categorial está excluída a possibilidade de uma única e exclusiva causa de qualquer fenômeno social, como ainda não há qualquer possibilidade de esta causa única residir na técnica (nos meios de trabalho) ou na ciência. Em todo processo histórico há sempre e necessariamente um momento predominante [übergreifendes Moment], mas isto é completamente distinto de qualquer causa determinante única.
Uma última observação: uma concepção mais superficial poderia imaginar que da centralidade ontológica do trabalho para o mundo dos homens decorreria necessariamente a prioridade da técnica sobre as relações de produção. Para evitar mal-entendido, é necessário que nos detenhamos, ainda que rapidamente, também sobre esse aspecto da questão.
A centralidade ontológica do trabalho, tal como descoberta por Marx e explorada por Lukács em sua Ontologia, é o fundamento ontológico da prioridade das relações de produção sobre a técnica. Esta nada mais é que o desenvolvimento dos meios de produção, e eles são sempre os meios de produção de um dado intercâmbio dos homens com a natureza, intercâmbio este cuja forma histórica mais geral são os modos de produção propriamente ditos. Cada modo de produção desenvolve os meios de produção que necessita para se reproduzir enquanto tal e, correspondentemente, impede o desenvolvimento dos meios de produção que entram em choque com a sua essência. O escravismo não possibilitou o desenvolvimento das máquinas a não ser para a guerra, esta era uma determinação histórica insuperável das relações de produção escravistas. Analogamente, o feudalismo conheceu um desenvolvimento técnico muito mais acelerado que o escravismo e o modo de produção asiático porque as relações de produção feudais assim o possibilitaram. Não foi o desenvolvimento técnico que levou a derrocada do escravismo e, depois, ao surgimento do feudalismo; do mesmo modo como não foi o desenvolvimento tecnológico que levou a sociedade europeia do feudalismo ao capitalismo (e, as sociedades da América, Ásia e África, dos seus modos pré-capitalistas de produção ao capitalismo). Foi o surgimento de um novo modo de produção, com novas possibilidades de desenvolvimento para as relações de produção e, portanto, para a relação do homem com a natureza, que tornou possível e necessário o aparecimento das novas tecnologias. Não há, por isso, qualquer contradição entre se afirmar a validade da tese marxiana do trabalho enquanto categoria fundante do mundo dos homens e o predomínio ontológico das relações de produção sobre o desenvolvimento tecnológico. Muito pelo contrário, entre a prioridade ontológica do trabalho e o momento predominante [übergreifendes Moment] das relações sociais sobre o desenvolvimento da tecnologia há uma rigorosa articulação categorial.
Entre a argumentação de Lukács em 1920 e a da Ontologia contra as posições tipificadas pelo texto de Bukharin há um desenvolvimento evidente. E, neste particular,[9] a continuidade entre o Lukács de 1920 e o de 1960 evidencia-se ainda pelo fato de que os mesmos argumentos históricos são mencionados: nem na transição do escravismo romano ao feudalismo, nem na transição do feudalismo ao capitalismo, a técnica pôde ser identificada como causa determinante.[10]
A
divisão capitalista do trabalho e suas relações de poder é o que produz
as premissas sociais de um mercado de massa (dissolução da economia
natural) (...) As premissas sociais das técnicas mecanizadas modernas,
por conseguinte, surgiram primeiro, foram os produtos de uma revolução
social centenária. A técnica é a consumação do capitalismo moderno, não
sua causa inicial (Lukács, 1974, p. 47)
E, argumentando que certamente há uma influência do desenvolvimento da técnica no próprio desenvolvimento econômico, argumenta que “(...) esta interação recíproca de modo algum supera a real primazia histórica e metodológica da economia em relação à técnica”. (Lukács, 1974, p. 46)
Deixamos de expor, por uma questão de espaço, as análises feitas por Lukács das conhecidas passagens de Marx em Trabalho assalariado e capital e em Miséria da filosofia. Delas o filósofo húngaro retira novos elementos contra Bukharin e as concepções da técnica como causa determinante da história dos homens.[11]
Dos autores que examinamos, há dois campos distintos entre aqueles que defendem ser o desenvolvimento das novas tecnologias (a revolução técnico-científica em suas várias versões) o fundamento da desaparição do proletariado. Alguns argumentam que estaríamos vivendo a superação do capitalismo. Postular que o desenvolvimento tecnológico promovido pelo capital seria a este antagônico e que, por isso, conteria nele próprio a possibilidade de superação histórica da sociabilidade contemporânea significa partilhar de duas ilusões. A primeira, que a contraditoriedade do capitalismo seria tal que dele poderia linearmente surgir sua superação; que o capitalismo poderia se converter em outro modo de produção (pós-capitalista, pós-mercantil, socialista, comunista etc.) sem qualquer quebra da sua continuidade pela gênese revolucionária de uma nova essência da reprodução social. Ao tratar-se da conversão do capitalismo em socialismo, por exemplo, a substituição do tempo de trabalho socialmente necessário por um tempo disponível como essência da reprodução social[12] teria a marca da continuidade do desenvolvimento técnico sob a regência do capital, o que significa uma retomada das teses reformistas da II Internacional antes da Primeira Grande Guerra.
Postular que o desenvolvimento da técnica conduziria ao socialismo significa, ainda, compartilhar de uma segunda ilusão. A de que o desenvolvimento da tecnologia capitalista se contraporia à reprodução da propriedade privada burguesa.
São estas duas ilusões que servem de pressupostos às teses que, de Mallet a Negri, de Daniel Bell a Schaff, afirmam que o desenvolvimento tecnológico nos levaria pra além do capitalismo, pouco importando aqui se este além do capitalismo seria o socialismo, o comunismo de Negri, uma sociabilidade pós-mercantil ou pós-industrial, uma sociedade informática etc.
Há, todavia, entre os autores que concedem prioridade à técnica na explicação das transformações que estamos vivendo muitos que não compartilham destas ilusões. Argumentam que não estaríamos superando o capitalismo, que as transformações em curso intensificam a exploração do trabalho e, não, a superam. Contudo, postulam que o surgimento das novas tecnologias teria alterado a essência das classes sociais, de tal modo que o proletariado teria se dissolvido entre os assalariados ou entre a classe média. Entre nós, os exemplos mais marcantes são Antunes e Iamamoto, longe evidentemente de serem os únicos. Com todas s significativas e importantes diferenças que mantêm frente a autores como Negri, Schaff, Lojkine etc., confluem para uma concepção comum a todos eles: a de que a técnica seria a causa determinante das transformações societárias ao final do século XX. Ainda que dirigida contra [Anthony] Giddens, a observação de [Flávio] Aguiar é precisa:
Na prática, a tecnologia é entendida unilateralmente. Ou seja, a tecnologia — seja ela qual for —
é considerada como um a priori que comanda e direciona as mudanças
sociais. É como se a tecnologia não tivesse um substrato social que lhe
alimente e lhe dê as suas configurações. No limite, a tecnologia só
teria implicações ao nível do tecido social, onde este se veria despido
do seu caráter determinante na produção tecnológica. A tecnologia, para
as correntes sociológicas do mainstream acadêmico, é (quase) sempre uma causa mas nunca um efeito. (Aguiar, 2005)
Este “fetichismo” da técnica (Lukács, 1974, p. 44), repetimos, não é uma criação recente nem uma originalidade do debate contemporâneo. Pelo contrário, como muitas das suas principais teses, também essa determinação da história pela técnica é um revival de antigas teses. Nenhum, dos autores analisados, avoca para si a tradição de um Bukharin ou do marxismo da II Internacional, ainda que compartilhem de concepções semelhantes.
Há, todavia, nesse debate do papel histórico da tecnologia uma particularidade curiosa. A aproximação às teses reformistas da II Internacional de autores que consideram o desenvolvimento da tecnologia a causa determinante do desenvolvimento social também pode resultar de uma perspectiva em tudo diversa. Se, para tais autores, a tecnologia seria neutra em relação ao conflitos de classe de tal modo que seu desenvolvimento conduziria à superação do capitalismo, para outros autores o desenvolvimento da tecnologia também poderia ser o espaço da superação do capitalismo — mas pela razão justamente oposta. Para eles a técnica é uma relação imediatamente política, uma decorrência direta das relações de poder na sociedade. Em sendo política, a tecnologia passa a ser concebida como um campo de disputa entre os trabalhadores e o capital e a luta pelo controle da produção (e não mais, para retomar Marx de Trabalho, preço e lucro, pela “abolição do sistema do trabalho assalariado” (Marx, 1977, p. 378) passaria a ser ponto nodal da transformação da sociedade capitalista.
Um bom exemplo entre nós é o texto de Márcia de Paula Leite, O futuro do trabalho (Leite, 1989), relatório de uma pesquisa que realizou nos dois anos anteriores em duas fábricas paulistas. Seu ponto de partida é uma definição de técnica como uma “relação de força” entre os “grupos sociais envolvidos” (Leite, 1989, p. 26; tb. p. 39). Desse postulado inicial, ela conclui que a análise deve ser feita “não apenas a partir dos elementos econômicos”, mas também dos “aspectos políticos relacionados à questão da dominação dos produtores e da disputa pelo poder no interior dos estabelecimentos produtivos”. (Leite, 1989, p. 36) Aqui, opera-se a primeira redução importante: a relação de dominação na produção é tratada como uma questão “política”. Por questão política entende-se a “disputa travada cotidianamente” entre os “empregadores” que querem aumentar a produtividade e os trabalhadores que buscam o “controle do processo de trabalho” (Leite, 1989, p. 26), em uma formulação que não deixa de lembrar as teses de Mallet acerca do que ele entendia ser o novo objetivo de luta da nova classe operária: o controle da produção.
Como a luta política tem um necessário componente subjetivo, a “preocupação central” de seu livro será a “percepção” dos trabalhadores acerca das novas tecnologias, de modo a colocar em relevo
as
transformações [que] vêm sendo experimentadas pelos trabalhadores e as
imagens e representações que eles vêm construindo desse processo,
através das quais eles buscam explicar realidade em que se encontram
inseridos e a partir das quais eles vêm orientando suas opções e
estratégias frente a ele. (Leite, 1989, p. 30).
Estaria nas “representações”, nas “imagens” dos trabalhadores, na “internalização subjetiva de suas condições de existência” (Leite, 1989, p. 30) a explicação de seu comportamento cotidiano.
Se, antes, a ‘relação de força” que seria a tecnologia tinha um componente político essencial (a dominação na produção era identificada à dominação política), agora a política é descartada, dando-se ênfase à vida cotidiana e à “internalização subjetiva” das “condições de existência”. (Leite, 1989, p. 30) Esta é uma passagem bastante problemática, mesmo no horizonte teórico de Leite. Pois, se o comportamento cotidiano dos trabalhadores será explicado através das suas “representações” e “imagens” e se estas não mais serão imediatamente políticas, quando se tratar da dominação nos locais de trabalho, qual o tipo de dominação que resta? Tendo afirmado a identidade entre a exploração econômica e a política, retirada a política, qual o tipo de dominação poderia ainda haver para Leite na vida cotidiana dos trabalhadores nos locais de produção?
O texto remete então a [E. P.] Thompson e a Agnes Heller de Para mudar a vida. Para postular uma tese ainda mais problemática:
A
importância deste tipo de abordagem para a análise do processo de
trabalho reside ainda no fato de que, em última instância, o aspecto
subjetivo deve ser considerado também como parte integrante das
condições objetivas de trabalho. (Leite, 1989, p. 34)
Estaria a autora querendo afirmar uma identidade sujeito-objeto próxima a Hegel? Ou simplesmente migrando para o idealismo subjetivo? O texto é confuso e não fornece respostas a estas questões. Não parece ter a autora consciência das implicações teóricas aqui envolvidas. Agora que o subjetivo virou objetivo (e vice-versa), trata-se de reduzir as classes sociais às suas experiências empíricas imediatas, entendidas “menos” pelos “aspectos políticos” ou pelas “condições materiais de vida” (Leite, 1989, p. 30) e mais pelas suas “imagens” e “representações” que expressariam a “internalização subjetiva de suas condições de existência”. (Leite, 1989, p. 30)
Neste momento do seu raciocínio, Leite não tem mais como evitar o confronto aberto com as teses de Marx. E o faz de uma forma pouco fiel ao autor alemão: a tese de Marx de que as classe seriam determinadas pelo lugar dos indivíduos na estrutura produtiva da sociedade é caracterizada como sendo incapaz de pensar a historicidade e evolução das classes sociais. Quem já se deu ao trabalho de ao menos folhear o 18 brumário de Luis Bonaparte — para não mencionar o volume I de O capital — sabe que o autor alemão demonstra ser esta relação com estrutura produtiva da sociedade o fundamento ontológico da fantástica plasticidade das classes sociais em cada conjuntura da história. Para Leite, todavia,
Ao
se pensar na classe social não como uma categoria estática, definida a
partir do lugar que os indivíduos ocupam no processo de produção, à qual
corresponderiam necessariamente determinados interesses e, portanto,
uma determinada consciência, mas sim como uma categoria histórica em
constante evolução e transformação que se vai constituindo e se formando
no próprio processo de lutas, a partir da maneira como os indivíduos
vivem suas relações produtivas, é necessário ter-se em conta a dimensão
ao mesmo tempo individual e coletiva desse processo. (Leite, 1989, p.
34-5).
Ou seja, para se “pensar” a classe social como uma “categoria histórica em constante evolução e transformação” “que se vai constituindo e se formando no próprio processo de lutas”, é “necessário ter-se em conta a dimensão ao mesmo tempo individual e coletiva desse processo”. Quem poderia discordar de tal tese? Contudo, ela está associada ao fundamental da concepção de mundo de Leite, qual seja, “pensar” as classes sociais “a partir do lugar que os indivíduos ocupam no processo de produção, à qual corresponderiam necessariamente determinados interesses e, portanto, uma determinada consciência”, seria conceber a classe social como uma “categoria estática”.
Pois bem, para argumentarmos, cancelemos a determinação ontológica das classes sociais a partir do local que ocupam na estrutura produtiva. Agora elas não mais se distinguiriam por “determinados interesses” oriundos “do lugar que os indivíduos ocupam no processo de produção”, mas sim, “pela internalização subjetiva de suas condições de existência”. Tais “condições de existência”, claro está, não mais podem se relacionar com a estrutura produtiva da sociedade. O que, então, seriam elas? As “representações” e o “imaginário” dos trabalhadores? E seriam representações, e comporiam um imaginário, acerca de quê? Retirado o fundamento ontológico consubstanciado pelo lugar que ocupam na estrutura produtiva, de onde viria o constante processo de transformação das classes sociais? Qual o seu fundamento? De onde surgiria a “constante evolução e transformação” das classes sociais, tanto do ponto de vista dos indivíduos que as compõem como também da coletividade que são?
O texto não dá uma resposta cabal a estas questões, mas esclarece que
Essas
preocupações inscrevem-se num quadro teórico que se apoia numa noção de
história aberta, que recusa a ideia presente em amplos setores do
marxismo de uma teleologia onde o futuro já estaria inscrito nas
características estruturais da sociedade atual e para a qual as únicas
práticas importantes ou “consequentes” seriam aquelas dirigidas a este
fim. (Leite, 1989, p. 36)
Pronto: “história aberta” significa, primeiro, reduzir o marxismo a uma concepção teleológica da história. Em seguida, adotar como critério de avaliação “práticas” as representações e o imaginário da vida cotidiana dos operários das duas fábricas paulistas que ela examina. E, como, nestas fábricas, pôde constatar que a revolução não estava na ordem do dia, conclui que os operários não seriam a classe revolucionária. Fazer uma dedução acerca do papel histórico de uma classe generalizando-se os resultados de uma pesquisa em apenas duas fábricas paulistas, operando tal generalização sem qualquer consideração para com o momento histórico contrarrevolucionário em que vivemos, é um procedimento metodológico por demais questionável, para dizer o mínimo.
Além deste problema, as concepções mal resolvidas da autora acerca da relação entre objetividade e subjetividade, que acima mencionamos, terminam cobrando o seu preço. Ao final, seu texto flutua entre duas diferentes concepções acerca da “evolução e desenvolvimento” da sociedade. Em alguns momentos, por exemplo, somos ditos que “a raiz da crise” do fordismo estaria na subjetividade e na resistência operárias. (Leite, 1989, p. 80) Poucas páginas depois, as coisas já não seriam mais assim. A crise do fordismo teria origem na esfera intrinsecamente produtiva (“diminuição dos ganhos de produtividade, redução do poder de compra dos mercados, elitização do consumo e incremento da competição intercapitalista mundial” (Leite, 1989, p. 83; 84). A ambiguidade da concepção da autora termina colocando-a nesta difícil posição de explicar o mesmo fenômeno social de causas inteiramente distintas.
O que interessa, todavia, para nosso estudo, é o que o texto de Leite tem de típico de uma postura comum na sociologia do trabalho: a tese de que as relações de produção seriam “políticas”, por isto entendendo-se um campo de disputa entre atores sociais com interesses distintos[13]. Esta é uma tese aparentemente muito à esquerda daquelas concepções que tomam as relações de produção como decorrências diretas e inevitáveis da tecnologia. Todavia, bem pesadas as coisas, esta aparência é enganosa, principalmente quando se trata da determinação das classes sociais e, em particular, das peculiaridades do proletariado. Por serem “campos de disputas”, por serem “políticas”, as relações de produção capitalistas evoluiriam segundo a correlação de forças a cada momento. Assim, com a devida pressão operária, as relações de produção capitalistas poderiam incorporar demandas dos trabalhadores de tal modo que a superação revolucionária do modo de produção capitalista é substituída pela evolução das relações de produção graças à pressão dos trabalhadores. A luta no interior da fábrica, mais diretamente sindical do que política, seria assim o locus estratégico da perspectiva operária e, correspondentemente, a revolução que aboliria o sistema do trabalho assalariado é reduzida a um desprezível projeto teleológico-autoritário. A grande e fatal ilusão desta tese é imaginar que, sem a revolução, a pressão operária sobre o desenvolvimento da tecnologia, uma pressão efetiva e real, possa resultar em algo diferente do que mais e mais tecnologia capitalista. Na luta sindical (bem como no Estado) o máximo que o trabalhador pode conseguir é representar-se como trabalhador abstrato, isto é, como o simétrico do capital. Para constituir-se enquanto sua negação histórica e, nesta esfera de conflitos, o campo resolutivo não está na disputa ao redor da tecnologia empregada nas empresas capitalistas.
De um modo inesperado, portanto, a tese de que as relações de produção seriam “políticas” termina em um resultado bastante semelhante àquelas teses que reduzem o desenvolvimento das relações de produção à evolução da tecnologia: em ambos as teses, é na esfera da tecnologia que se determinam as relações de produção e, portanto, as classes sociais. Em ambas o horizonte revolucionário é perdido, seja porque teria sido o desenvolvimento espontâneo, automático, da tecnologia a causa determinante da história, seja porque é na esfera da tecnologia que a pressão “política” dos trabalhadores desenvolverá as mediações decisivas para a transição do modo de produção capitalista ao socialismo.
Perguntamos, no início do capítulo, qual das teorizações que examinamos seria capaz de substituir a Marx, caso esta substituição fosse necessária. Podemos, agora, dar uma primeira resposta parcial a esta questão levando-se em conta o amplo campo de autores que conferem papel determinante ou preponderante à tecnologia, para que qualquer um deles pudesse substituir as categorias marxianas na análise do trabalho e das classes sociais, teria que demonstrar como, na relação entre modos de produção e técnica, caberia a esta o momento predominante [übergreifendes Moment]. E que, portanto, há história do capitalismo, seria o desenvolvimento da técnica que fundaria a possibilidade de superação da relações de produção capitalista e, não, o inverso. Isto está muito longe de ter sido realizado pelos autores que consideramos. Como argumentos, tomam por garantidos pressupostos que não demonstram, e são, por isso, sob este aspecto, teoricamente débeis, instáveis.
Contra este senso comum que hoje predomina na mainstream
das ciências sociais, não apenas as investigações ontológicas como as
de Lukács e Mészáros, análises dos textos de Marx ou nele inspirados,
como as de Romero (2005) e Aguiar (2005), mas também estudos
sociológicos como os de Hirata, Carvalho e Kumar, confluem para o fato
de que, na relação entre a tecnologia e as relações de produção cabe a
estas o momento predominante [übergreifendes Moment]. Foi assim
na história, e continua sendo válido para as transformações que vivemos
nas últimas décadas. Também neste particular, as teses marxianas têm
sido confirmadas pelo desenvolvimento histórico e o teóricos que
analisamos e que se propõem como superadores das teses marxianas têm
ainda que demonstrar a validade deste seu pressuposto, qual seja, que a
tecnologia é o momento predominante [übergreifendes Moment] do desenvolvimento histórico.
= = =
Notas:
Notas:
[1] De uma perspectiva diferente da nossa, cf. D. Gallie, In Search of the New Working Class, Cambridge, New York University Press, 1978, p. 4-5.
[2] Em uma crítica certeira a este tipo de “dialética”, [Jorge] Semprun colocou na boca de um de seus personagens em Que belo domingo [São Paulo, Nova Fronteira, 1978], o comentário de que, nas mãos dos partidos da III Internacional a dialética se converteu “Na arte e na maneira de sempre se cair de pé”. Sobre esta questão, é fundamental o único capítulo de sua Ontologia que Lukács deixou pronto para publicação, A falsa e a verdadeira ontologia de Hegel (Lukács, São Paulo, Ciências Humanas, 1978). Nesse belo e sintético texto, Lukács argumenta que, sem o momento predominante [übergreifendes Moment] descoberto por Marx, a dialética tende a dissolver as determinações do real que ela consegue refletir (a verdadeira ontologia) em uma concepção de mundo logicizada e idealista (a falsa ontologia).
[3] A literatura sobre esta relação entre tecnologia e história é muito grande. Nela, a obra de Bernal, Science in History (Nova York, Cameron Associates, 1954) é uma referência obrigatória.
[4] Em uma outra passagem, Marx volta-se a esta mesma questão. Comentando que os fósseis nas cavernas pré-históricas indicam as condições “socioeconômicas desaparecidas”, acrescenta que “Não é o que se faz, mas como, com que meios de trabalho se faz, é o que distingue as épocas econômicas. Os meios de trabalho não são só mediadores do grau de desenvolvimento da força de trabalho humana, mas também indicadores das condições sociais nas quais se trabalha. Entre os meios de trabalho mesmos, os meios mecânicos de trabalho, cujo conjunto pode-se chamar de sistema ósseo e muscular da produção, oferecem marcas características muito mais decisivas de uma época social de produção do que aqueles meios de trabalho que apenas servem de recipientes do objeto de trabalho e cujo conjunto pode-se designar, generalizando, de sistema vascular de produção, como, por exemplo, tubos, barris, cestas, cântaros etc”. (Marx, Le capital, tradução de J.-P. Lefbvre, Paris, Messidor/Éditions Sociales, 1983a, p. 151) Os fósseis podem indicar as condições “socioeconômicas desaparecidas” porque estas, ao predominarem sobre o produzido, deixam no produto a marca da sociedade da qual são fundamento. E, de tudo o que foi produzido pelos homens, os meios de trabalho trazem mais evidências da situação histórica passada do que os meros “recipientes do objeto de trabalho”, justamente porque consubstanciam de modo mais direto a sua relação com as condições “desaparecidas”. É o desenvolvimento das relações de produção — no limite, o desenvolvimento da relações sociais — o fundamento do desenvolvimento tecnológico.
[5] Sobre a relação complexo industrial-militar e reprodução do capital ver Para além do capital de Mészáros, São Paulo, Boitempo, 2002, em especial o Capítulo XV sobre a “produção destrutiva”. E sobre as guerras e o seu peso na história do século XX, é impressionante o livro de Kolko, Century of War (Nova York, The New Press, 1994).
[6] Marx se refere, nesta passagem, à tecnologia como mediação para a produção de mais-valia e, não, como “meio de produção” que só pode ser natureza ou natureza transformada, como já vimos. No Capítulo V do Livro de O capital quando se refere a meio de produção emprega o termo Produktionsmittel e, nesta passagem, Mittel zur Produktion. Talvez seja mais preciso traduzir, nesta passagem, “meio para a produção” do que por “meio de produção”.
[7] Para um tratamento mais cuidadoso destas questões, cf. Lessa [Sociabilidade e individuação, Maceió, Adufal, 1995] e Lukács [Per una ontologia dell'essere sociale, v. II, Roma, Riunuti, 1981], em especial o capítulo dedicado à reprodução social. A menção a Bukharin está em Lukács, 1981, p. 341 (foi Gilmaisa Costa quem nos chamou a atenção para esta passagem da Ontologia).
[8] A importantíssima exceção histórica são os momentos revolucionários, nos quais a política, expressão da luta de classes, desloca o posto de momento predominante [übergreifendes Moment] corriqueiramente ocupado pela economia. Durante as revoluções a própria forma da propriedade privada é determinada politicamente, por exemplo.
[9] “Neste particular” porque há uma discussão em curso sobre continuidade e ruptura entre o Lukács da década de 1920 e os resultados alcançados pela sua Ontologia, debate que ganhou um novo impulso com a publicação de Para além do capital de Mészáros (2002).
[10] Daniel Romero, aparentemente sem conhecer este texto de Lukács, retoma a mesma tese: “Marx nos mostra como as relações de produção capitalistas são formadas antes da constituição de forças produtivas típicas do próprio modo de produção especificamente capitalista”. (Marx e a técnica, São Paulo, Expressão Popular, 2005, p. 219) Apesar de possivelmente por demais marcado pelo logicismo de um [Enrique] Dussel e algumas afirmações questionáveis acerca do trabalhador coletivo e da relação entre subsunção formal e real do trabalho ao capital, este texto é uma boa surpresa no debate contemporâneo. Retoma o que nos parece ser a melhor tradição nesta área, qual seja, a recusa do “fetichismo” da técnica.
[11] As passagens são as seguintes: “Um negro é um negro. Apenas dentro de determinadas condições ele se torna escravo. Uma máquina de fiar algodão é uma máquina de fiar algodão. Elas se transformam em capital apenas em condições determinadas. Fora destas condições, ela tampouco é capital como o ouro é por si próprio moeda ou açúcar é o preço do açúcar. Na produção os homens não agem apenas sobre a natureza, mas também sobre os outros. Eles somente produzem colaborando de uma determinada forma trocando entre si suas atividades. Para produzirem, contraem determinados vínculos e relações mútuas e somente dentro dos limites desses vínculos e relações sociais se opera sua ação sobre a natureza, isto é, se realiza a produção”. (“Trabalho assalariado e capital”, in K. Marx e F. Engels, Textos, São Paulo, Ed. Sociais, 1977, p. 69).“Las máquinas no constituyen una categoría económica, como tampouco el buey que tira del arado. Las máquinas no son más que una fuerza productiva. La fábrica moderna, basada en el empleo de las máquinas, es una relación social de producción, una categoría económica.” (Miséria de la filosofia, Moscou, Progressio, 1979, p. 108)
[12] Conferir, sobre esta relação entre o tempo de trabalho socialmente necessário e o tempo disponível, Tonet [A questão do socialismo, Curitiba, HDD Livros, 2002]; Lessa [“Comunismo, do que se trata?”, in A. Galvão et. al. (orgs), Marxismo e o socialismo no século XXI, Campinas/São Paulo, Cemarx/Xamã, 2005]; e, sobretudo, Mészáros [op. cit.], 2002, p. 887 e ss.
[13] No início da década de 1990, gozou de uma certa popularidade a tese de que o combate ao economicismo implicaria no reconhecimento de que a exploração econômica seria imediatamente política e um dos autores então mais citados foi Michael Burawoy. A tese central de seu livro, The Politics of Production (Londres/Nova York, Verso, 1985), partia do pressuposto que buscar o fundamento social nas relações econômicas seria o mais grave problema do economicismo o qual, para ele, retirava a luta de classes da histórias ao fazer desta o desdobramento dos processos econômicos. Tratar-se-ia, portanto, de trazer os trabalhadores de volta à cena e isto apenas seria possível resgatando a luta de classes enquanto um conflito imediatamente político. Por político, segundo Burawoy, deveria ser entendido o conflito entre subjetividades; entre, para sermos breves, ideologias distintas. Esta concepção conduziria, por vezes, a formulações que postulavam ser a mais-valia uma categoria política e não econômica, como podemos encontrar em Antonio Negri. Ainda que Leite não cite o autor americano, suas teses se aproximam neste particular do campo teórico de Burawoy.
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LESSA, S. Trabalho e proletariado no capitalismo contemporâneo. 2ª ed. Sâo Paulo: Cortez, 2011, pp. 253-274.
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LESSA, S. Trabalho e proletariado no capitalismo contemporâneo. 2ª ed. Sâo Paulo: Cortez, 2011, pp. 253-274.
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