por Sérgio Lessa
O Comuneiro/2007
Introdução
A relação entre a obra de Marx e a filosofia talvez possa ser mais claramente explicitada se partimos de uma das categorias centrais, senão a central, do seu pensamento: o comunismo.
A humanidade, do ponto de vista do desenvolvimento das forças produtivas, conheceu duas revoluções verdadeiramente decisivas. A primeira foi a Revolução Neolítica, há aproximadamente 10 mil anos atrás. A descoberta da semente tornou possível, pela primeira vez, que o indivíduo que trabalhasse produzisse mais do que o necessário para a sua sobrevivência imediata. Ao invés da situação precedente, na qual tudo o que era produzido era imediatamente consumido, com a descoberta da agricultura abria-se a possibilidade de se acumular produtos resultantes do trabalho humano: surgia, assim, a riqueza e a possibilidade de sua acumulação.
Para que fosse plenamente explorada, esta nova possibilidade histórica exigiu profundas alterações na vida social. Foi necessário a passagem do nomadismo ao sedentarismo e exigiu o surgimento das primeiras formas de exploração do homem pelo homem (escravismo e modo de produção asiático). A divisão da sociedade em classes sociais tornou imprescindível a gênese e desenvolvimento de uma série de complexos para ordenar a nova forma de reprodução social, como o Estado, o Direito e o casamento monogâmico. As potencialidades de desenvolvimento inerentes a esta nova forma de reprodução social não podem ser exageradas: retirou a humanidade do período pré-histórico e, no Ocidente, colocou o gênero humano em um processo histórico que conduziu, com avanços e recuos, ao capitalismo de nossos dias.
A nova sociabilidade surgida da Revolução Neolítica tinha, todavia, um forte limite: o “afastamento das barreiras naturais” era ainda tão incipiente que as ferramentas e as técnicas que podiam ser empregadas eram aquelas que um adulto médio poderia manejar. Ainda que algumas máquinas tenham sido empregadas neste período histórico (o moinho de vento, por exemplo, ou então máquinas movidas pela tração animal), eram casos excepcionais que apenas confirmam a regra geral: o corpo humano continuava sendo importante limite para o desenvolvimento das forças produtivas. Este limite histórico fez com que tanto as sociedades do modo de produção asiático, como do escravismo, do feudalismo e do período da acumulação primitiva (séculos XVI ao XVIII), não conseguissem produzir o necessário e conhecessem objetivamente a escassez. Se toda a produção fosse dividida igualmente, tratar-se-ia sempre de dividir a carência: todos passariam igualmente necessidade e nada mais restaria para ser investido no desenvolvimento das forças produtivas.
Se, todavia, ao invés da primitiva divisão igualitária, a riqueza fosse acumulada nas mãos de uma minoria sob forma da propriedade privada, poder-se-ia investir o excedente no desenvolvimento das forças produtivas. De fato, na História Antiga, estes dois padrões de reprodução social se confrontaram; grosso modo, os gregos e os romanos de um lado e os “bárbaros” de outro. A favor dos gregos e romanos estava a sua maior capacidade para desenvolver as forças produtivas (pelo acúmulo de escravos; pela construção de portos, estradas, redes comerciais e, também, pelos exércitos necessários para conquistar e defender territórios). Os povos “bárbaros” foram, assim, paulatinamente convertidos em escravos e as sociedades mais igualitárias primitivas foram sendo substituídas pelas sociedades de classe.
Foi por esse processo — e não porque os homens seriam essencialmente ruins ou, então, porque teríamos todos, por essência, a propriedade privada — que a sociedade de classes, com todas as suas ignomínias, suplantou as sociedades primitivas. A situação histórica de carência gera, necessariamente, a propriedade privada e uma sociedade marcada pelo mercado e pela concorrência. Claro que esta conexão ontológica entre carência e propriedade privada se afirma de forma diferenciada em cada modo de produção (há diferenças significativas entre a mercadoria e a propriedade privada no feudalismo e no escravismo, entre o mercado e o trabalho no escravismo e no capitalismo, etc., etc.), essas diferenças, contudo, não diminuem a veracidade do afirmado: há uma relação ontológica entre a carência e a forma privada de apropriação da riqueza socialmente produzida. Foi por isso que entre as primeiras sociedades de classe e o final do século XVIII a propriedade privada reinou inconteste.
Esta situação foi, finalmente, modificada pela Revolução Industrial; é ela a segunda grande revolução das forças produtivas que mencionávamos no primeiro parágrafo. A sua importância está em que, com a aplicação de máquinas ao processo produtivo, as “barreiras naturais” são afastadas a tal ponto que o corpo humano deixa de ser o limite para o desenvolvimento das ferramentas e das forças produtivas em geral[1]. Agora, as ferramentas, as técnicas de produção (e, portanto, também as formas de organização do trabalho) não mais precisam respeitar os limites da força física de um adulto médio. Uma prensa de muitas toneladas pode ser movimentada mecanicamente, enquanto que antes um martelo não poderia ter mais do que alguns quilos para poder ser manejado pelo trabalhador.
As possibilidades de desenvolvimento das capacidades humanas, principalmente para retirar da natureza os bens indispensáveis à sua própria reprodução, aumentam exponencialmente. Pela primeira vez a humanidade vive a possibilidade histórica objetiva de produzir mais do que o necessário para todas as pessoas que vivem no planeta Terra. A revolução industrial marca a passagem de uma situação histórica de carência para uma de abundância (ou, quando esta não se estabeleceu objetivamente, pela possibilidade real de vir a se estabelecer com facilidade). Dois exemplos para deixar mais claro ao que nos referimos. A produção de alimentos no planeta já é suficiente para uma população duas vezes maior a atual. Se há fome, portanto, não é porque faltam alimentos. A cidade de São Paulo possui 40 mil famílias sem moradia e 80 mil domicílios desocupados. Se, a cada família sem-teto fosse doada uma moradia, sobrariam ainda 40 mil desocupadas; é inevitável a conclusão que não é a falta de moradia a causa de haver sem-tetos em São Paulo.
Se moradias e comida em excesso convivem com famintos e sem-tetos é porque o modo de produção capitalista não pode retirar todas as possibilidades históricas da passagem histórica da carência à abundância. Examinemos mais de perto esta última afirmação.
A reprodução do capital
O capital é uma forma de propriedade privada que se caracteriza entre outras coisas, pela absoluta necessidade de se reproduzir de forma ampliada. Um capital que não aumenta no tempo é um capital em via de extinção. Tal como uma bicicleta, como diz Meszáros, se parar de girar, cai. Esta sua característica decorre do seu próprio ser, de suas leis imanentes. Ele apenas existe como uma riqueza que foi apropriada privadamente pela mediação da mais-valia. Esta, por sua vez, apenas pode ser gerada pela separação do trabalhador dos meios de produção e a conversão da força de trabalho em uma mercadoria como outra qualquer: o trabalho assalariado. Esta riqueza apropriada sob a forma do capital, todavia, tem apenas um valor de uso, e nenhum outro: adquirir mais força de trabalho, quer pela compra direta; quer pela aquisição indireta através da compra dos meios de produção, da matéria prima, etc., ou, ainda, pelo custeio do necessário para manter o sistema capitalista em funcionamento, como é o caso do Estado e dos funcionários públicos, do exército, do complexo judiciário, educacional e muitos outros.
A única função social do capital, portanto, é comprar a força de trabalho sob a forma assalariada; simetricamente, a única utilidade da força de trabalho assalariada é produzir mais valia. Estamos frente a uma determinação reflexiva: o capital, para existir, requer a compra incessante da força de trabalho; os assalariados, por sua vez, apenas podem existir se constantemente puderem vender sua força de trabalho ao capital. Sem força de trabalho para ser, direta ou indiretamente, comprada, o capital não tem qualquer utilidade; analogamente, sem o capital para comprá-la, a força de trabalho assalariada não tem qualquer função social. É este círculo vicioso, parte da essência do capital, que faz com que ele seja uma força social literalmente incontrolável: destruiu todas as barreiras sociais ao seu desenvolvimento e, atualmente, destrói a própria humanidade já que esta — paradoxalmente — se converteu no principal obstáculo ao seu desenvolvimento futuro.
A reprodução do capital requer, portanto, a manutenção do mercado: é pela sua mediação que pode não apenas comprar a força de trabalho como, ainda, vender as mercadorias produzidas convertendo-as na forma dinheiro imprescindível para que novos investimentos sejam feitos na produção de novas mercadorias e assim sucessivamente. E, no interior do mercado, uma mercadoria entre todas as outras joga um papel decisivo: a força de trabalho, a única cujo valor de uso está em que, ao ser consumida, produz um valor maior do que o seu próprio e, por isso, é a única fonte de mais valia.
A manutenção do mercado, por sua vez, implica na manutenção da forma democrática de Estado[2]: a concorrência da vida cotidiana na esfera produtiva se converte, com o tempo, no padrão de todas as relações sociais, inclusive das relações políticas. A organização da concorrência pela administração desse poder tem sua forma histórica mais madura na democracia. Tal como o mercado é a forma mais plena da concorrência entre proprietários privados, a democracia é a forma mais explicitada da concorrência política entre proprietários privados. E o Estado democrático é a moderna sociedade de proprietários privados que se organiza em poder político.
Propriedade privada, Estado, democracia, capital e trabalho assalariado são, portanto, determinações reflexivas: tal como não pode haver exploração do trabalho pelo capital sem a mediação política do Estado, também não pode haver a forma madura da propriedade privada, a burguesa, sem a democracia; não pode haver assalariamento sem a apropriação privada da riqueza socialmente produzida do mesmo modo pelo qual não pode haver concorrência política entre os proprietários privados sem que sejam, todos eles, reduzidos ao denominador comum de cidadãos. Enfim, para retomar os termos marxianos: a emancipação política corresponde à passagem ao capitalismo maduro; corresponde à plena vigência do capital enquanto forma de propriedade privada predominante na produção e à plena vigência da concorrência em todas as esferas da vida social. Na política, a forma historicamente madura desta concorrência é a democracia.
É esta forma de reprodução social — que é muito mais do que o trabalho abstrato, ainda que tenha nele o seu fundamento mais essencial — que é historicamente incapaz de explorar as potencialidades da situação histórica de abundância na qual adentramos com a Revolução Industrial. A sociedade de classes, mesmo em sua forma mais desenvolvida, a capitalista-democrática, por ser herdeira de um período histórico em que predominava a carência, tem na abundância sua inimiga de morte. Ou o capitalismo destrói a abundância ou será por ela destruído. E como, contraditoriamente, o capitalismo apenas pode se desenvolver pelo desenvolvimento das forças produtivas e, portanto, pela geração de uma abundância cotidianamente cada vez mais presente, vivemos uma situação histórica limite: o sistema do capital só pode existir se produzir uma abundância cada vez maior e, ao mesmo tempo, ele apenas pode sobreviver se converter esta abundância em carência.
É por isso que o problema econômico decisivo do modo de produção capitalista está na superprodução — e não, como em todos os modos de produção precedentes, na produção insuficiente. E há, grosso modo, apenas dois modos de enfrentarmos historicamente os novos desafios postos à humanidade pela presença objetiva da produção superior às necessidades.
As duas formas de se enfrentar a superprodução
Há duas formas de a humanidade conviver historicamente com uma produção superior às necessidades. A forma à qual estamos acostumados e conhecemos bem é a capitalista. A segunda, é o modo de produção comunista. No sistema capitalista, a abundância é enfrentada através da geração de uma carência artificial. Inicialmente, por ser o mais simples, a concentração da riqueza na classe dominante é convertida em carências artificiais por produtos de luxo. Passa-se a produzir artigos que apenas correspondem ao consumo perdulário das classes dominantes. Esta forma, digamos, “espontânea” porque emerge da tendência inerente ao capital de concentrar riqueza na classe dominante, tem limites muito estreitos. Com o passar do tempo, evidencia-se a necessidade estrutural de outros mecanismos de geração artificial de carências que garantam um nível de preços “saudável” à reprodução do capital. Momento decisivo neste desenvolvimento foi a crise de 1929. Ela evidenciou o quanto a superprodução poderia abalar o sistema do capital e forçou-o a tentar uma alternativa: a produção e o consumo de massas. O apogeu desta tentativa foram os “anos dourados” do capitalismo desenvolvido: o Estado de Bem-Estar e o fordismo.
A lógica do Estado de Bem-Estar e da economia de consumo de massa era, sinteticamente, o círculo vicioso pelo qual a produção em série derruba o preço do produto, o que aumenta o consumo o qual, por sua vez, provoca um novo aumento da produção fazendo o preço cair uma vez mais — e assim sucessivamente. Num segundo momento, utiliza-se a mão de obra muito mais barata do terceiro mundo para baixar ainda mais os preços nos mercados dos países centrais. Este crescimento da lucratividade geral do sistema tem duas importantes consequências no curto prazo: 1) possibilita o aumento dos salários nos países capitalistas centrais praticamente sem qualquer distribuição de renda efetiva[3]; e, 2) o aumento da produção gera empregos aumentando também por esta via o mercado consumidor. Com o aumento do mercado consumidor, pode-se produzir ainda mais, e assim sucessivamente.
Esta dinâmica continuaria indefinidamente se, já na década de 1950, não se evidenciasse que o consumo não aumentaria o suficiente para manter a acumulação capitalista. A saída do sistema do capital foi o desenvolvimento de uma outra válvula de escape: o complexo industrial militar. Do ponto de vista do capital, como bem argumenta Mészáros[4], o complexo industrial militar é a saída perfeita. Pois ele funciona com base em encomendas de um Estado facilmente controlável pelo grande capital e, portanto, não sofre as inseguranças do mercado. Em segundo lugar, tem sua demanda determinada politicamente e, não, pelo jogo da oferta e da procura: produz-se o que o Estado decide que será produzido e, novamente, trata-se de um Estado “permeável” às demandas do grande capital. E, por fim, porque os produtos do complexo industrial militar não precisam ser utilizados para serem consumidos: à empresa basta vender ao governo. Se o governo vai ou não empregar o que comprou em uma guerra ou se, pelo contrário, apenas estocará o armamento, não faz a menor diferença.
É esta particularidade do complexo industrial-militar que possibilitou, por exemplo, que entre os anos de 1950 e 1970 as armas nucleares acumuladas pelos EUA fossem suficientes para destruir o planeta 66 vezes e, o estoque soviético, 33 vezes. Ou seja, em 20 anos, construímos bombas suficientes para destruir o planeta 99 vezes! Este enorme desperdício de força produtiva, força de trabalho, recursos econômicos etc. não pode ser exagerado: a humanidade preparou milimetricamente, com o que tinha de melhor em termos de técnica e inteligência, a extinção dos homens do planeta. E a razão desta barbaridade — pois não há outro nome para tal feito — é a necessidade intrínseca ao capitalismo em gerar um consumo artificial que consuma a superprodução que lhe fere de morte.
Processos análogos, também eficientes economicamente ainda que não tão dramáticos, permeiam nosso dia a dia. A obsolescência planejada faz com que os produtos durem cada vez menos, a adoção de embalagens que forçam um aumento do consumo (a embalagem de papel-alumínio faz com que se jogue fora entre 4 e 7% dos produtos à base de tomate, com a embalagem de vidro a perda era praticamente nenhuma); a propaganda maciça que faz com que uma roupa perca seu valor de uso e, portanto, não mais possa ser usada muito antes que tenha sido de fato consumida; a adoção de tecnologias e produtos que geram carências artificiais com o único objetivo de impulsionar o consumo (a indústria de informática é, hoje, provavelmente o exemplo mais gritante, mas está longe de ser o único), etc., etc.
Todos estes mecanismos e a perdularidade resultante não foram suficientes para equilibrar o sistema e, em meados da década de 1970, após a derrota americana no Vietnã e as duas crises do petróleo, a crise estrutural se instalou. E, com a crise, fusões, muito mais que novos investimentos, constituem a dinâmica da acumulação de capital das últimas décadas: com os mercados abarrotados de mercadorias e com o terceiro mundo exaurido pela intensificação da exploração de suas economias, a alternativa é expandir ocupando fatias do mercado já existente e sob controle das empresas concorrentes. Para isso é necessário incorporar tecnologias que permitem a diferenciação marginal dos produtos e, acima de tudo, possibilitam a produção mais barato que o concorrente. Isto requer novas formas de produção que intensifiquem a exploração da mão de obra, que retirem de cada hora trabalhada uma quantia cada vez maior de mais valia.
Foi nesta quadra histórica que o Japão explodiu na economia mundial. O sucesso momentâneo do Japão estava em uma força de trabalho que aceitava condições de vida e trabalho inimagináveis para os países capitalistas do Ocidente. Foi com base nesta maior fonte de mais valia que o toyotismo pode se apresentar como o novo padrão produtivo internacional.
Os limites deste novo ciclo de acumulação, todavia, tardaram pouco para se manifestar: o aumento da produtividade do trabalho levou à ampliação do desemprego. A crise social daí decorrente teve sérias repercussões na própria reprodução do capital (aumento do custo de manutenção das grandes cidades, custos crescentes decorrentes do esgotamento das reservas naturais e da destruição do meio-ambiente, violência crescente, etc.) e a única resposta possível foi o aprofundamento do padrão vigente: as políticas de privatização que marcam o neoliberalismo nada mais são que a rapina, pelo capital privado, do capital estatal acumulado nas décadas anteriores. Esta rapina, não apenas não superou o descompasso entre a crescente produção e a generalização da miséria, como ainda tende a intensificá-lo no médio prazo. Ao retirar do Estado várias fontes de recursos e diminuir o seu peso na economia, diminuiu ao mesmo tempo a sua capacidade para desenvolver políticas compensatórias que poderiam auxiliar na atenuação momentânea dos efeitos da crise.
É assim que, nos dias em que vivemos, mais do que nunca o capital demonstra a sua desumanidade fundamental. No contexto da superprodução estrutural, o capital apenas pode se acumular pelo binômio desenvolvimento tecnológico/desemprego crescente. Desenvolvimento tecnológico para a exploração mais intensa da força de trabalho e, desemprego crescente, porque esta exploração mais intensa significa menor necessidade de força de trabalho em um mercado que não se amplia ou, no melhor dos casos, se amplia muito lentamente. Assim, o desenvolvimento das forças produtivas que, durante toda a história da humanidade, significou progresso, se converte nos nossos dias em fonte de crescente miséria material e espiritual. Não há como a humanidade ser mais intensamente alienada: o que nos faz humanos (o processo histórico impulsionado pelo desenvolvimento das forças produtivas) é, hoje, precisamente o que nos torna desumanos. E esta desumanidade é a essência da forma como o capital pode absorver em sua reprodução a superprodução que ele mesmo gera.
O modo comunista de produção
Como dizíamos, o capitalismo não é a única forma para se tratar a superprodução. A outra forma, é a comunista. A mudança já começa pelo termo: o que é superprodução para o modo de produção capitalista, para o comunismo é abundância. Se vivemos em um mundo que já produz mais comida, roupa, moradias, energia, etc. do que o necessário para o abastecimento de todos, o que falta fazer é colocar toda esta produção ao serviço da humanidade. Todo o produzido, coloca-se em depósitos dos quais todos os indivíduos, indiscriminadamente, podem retirar tudo o que quiserem, na quantidade que desejarem, quando almejarem. Em uma sociedade em que a oferta de produtos é superior à demanda – e este é o significado da abundância — o fundamento ontológico da mercadoria, o valor de troca, não tem as condições históricas para continuar existindo. Se todos podem ter acesso a tudo o que precisam – e mesmo mais do que precisam — a posse dos produtos deixa de ser poder econômico para explorar os outros. Quem irá vender sua força de trabalho em troca de casa, roupa, comida, remédios, etc., se pode ter acesso a tudo isso sem ter que pagar nada em troca? A mercadoria perde o seu sentido, pois a função social do valor de troca desaparece com a abundância.
Este o primeiro aspecto fundamental da transformação do modo de produção capitalista ao modo de produção comunista: o que era o problema central, a superprodução, se converte na grande solução para a humanidade, a abundância. A abundância gerada pelo capitalismo não é, todavia, a abundância mais adequada à sociedade comunista. Em primeiro lugar, porque é uma abundância de determinados produtos, muitos dos quais não teriam sentido em uma sociedade comunista (a indústria bélica, por exemplo). A abundância gerada pelo capitalismo também não é a adequada ao modo de produção comunista porque é mal distribuída pelo planeta e pelas classes sociais. Os países imperialistas concentram a maior parte da produção e do consumo. As classes dominantes, quase sempre sediadas nos grandes centros urbanos, concentram a maior parte do consumo. O atual sistema de distribuição, portanto, terá que ser radicalmente transformado.
Por fim, a abundância gerada pelo capitalismo é tão desumana, submete de tal forma e com tal intensidade o homem ao capital, que mesmo instrumentos banais como um martelo terão que ser re-configurados. Hoje, o que se considera ao produzir um martelo é qual a melhor forma, distribuição de peso, etc. que possibilite retirar do trabalhador a maior produção. Se, com o passar do tempo, este mesmo martelo arrebenta as articulações do cotovelo, é um custo colateral que tem pouquíssima importância para a reprodução do capital. No comunismo, as pessoas estão acima de qualquer outra consideração no ato de produção, de tal modo que nem mesmo uma coisa tão simples como o martelo (ou os teclados de computadores) permanecerá o mesmo quando forem, de fato, colocados à serviço da humanidade.
Uma reconfiguração de tal ordem da estrutura produtiva e distributiva não pode deixar intacta a categoria central aqui envolvida: o trabalho. Superado o trabalho abstrato, isto é, o trabalho assalariado, as atividades humanas, todas elas, passam a ter como eixo de gravidade as necessidades humanas. Quais serão estas necessidades, e como elas serão atendidas, é algo que apenas a humanidade poderá dizer. Isto é o que significa tomar a história em suas mãos: conscientemente, a humanidade decidirá, das necessidades, quais as prioritárias e, das possibilidades, quais as melhores para atender às prioridades.
Com a decisão consciente e coletiva, e com o fruto do trabalho à disposição de todos sem qualquer descriminação, o trabalho passa a ser, na vida cotidiana comunista, apenas e tão somente o que ele é: a conexão primordial de cada indivíduo com a totalidade do gênero humano. Como não há indivíduo fora de sociedade, o trabalho se converte, do ponto de vista de cada indivíduo, na sua primeira necessidade. É o que torna o indivíduo um ser social: participar na produção coletiva dos bens indispensáveis à reprodução da sociedade. Com todos trabalhando, a jornada de trabalho poderá ser incrivelmente encurtada, não mais do que umas poucas horas por dia. Na época de Marx, ele imaginava que uma das condições para o comunismo era uma jornada de trabalho de 48 horas semanais! Hoje, mesmo no capitalismo, não há necessidade de se trabalhar tanto.
Se o fruto do trabalho já não mais gera o poder econômico que é a base da exploração do homem pelo homem e, se o que e como será produzido é fruto de uma decisão coletiva, a administração passa a ser algo muito mais simples e que requer muito menos energia e recursos sociais que hoje. Deixa de ser a administração das pessoas (ou seja, uma forma de organização da luta de classes, com tudo o que isto implica) para ser “a administração das coisas e a direção no processo de produção”[5].
As energias sociais anteriormente despendidas no controle das pessoas (pensemos nos inúmeros mecanismos de controle e em seus especialistas, no interior de uma fábrica; a quantidade de força de trabalho e recursos inutilmente gastos nos aparelhos repressivos, etc.) serão liberadas para serem empregadas na produção das coisas, o que reduzirá ainda mais a jornada de trabalho. Decisão coletiva e consciente da organização da produção; livre usufruto de tudo o que for produzido; administração das coisas e não mais das pessoas, portanto fim de todos os mecanismos de controle sobre os indivíduos tanto nos locais de produção quanto na sociedade como um todo. Esta é a sociedade dos trabalhadores livremente associados. E sua lógica deixa de ser a reprodução ampliada do capital para ser o tempo disponível: a produção passará a ter como critério fundamental quantas horas estaremos dispostos, coletivamente, a dedicar de nossas vidas à produção do que iremos consumir. Ou, em outras palavras, a partir da abundância, o que significa que as necessidades básicas de todos estão plenamente atendidas, a questão decisiva na organização da economia deixa de ser o reino da necessidade para ser a liberdade: quantas horas de tempo disponível para a liberdade será indispensável para a nova forma de ser dos homens? Quanto tempo por semana estaremos dispostos à dedicar ao trabalho?
Quase nada restará da sociedade que conhecemos. O comunismo será uma sociedade que é tão diferente da nossa quanto o somos das sociedades primitivas. Uma sociedade que não conhece o valor de troca verá o dinheiro apenas nos museus; uma sociedade em que não há poder do homem sobre o homem e que, portanto, não possui polícia, nem judiciário, nem vigilantes, nem fechaduras, nem exércitos e nem países; uma sociedade em que o trabalho se converteu na primeira necessidade humana desconhece o que seja trabalho forçado pelo poder econômico de uma classe sobre a outra.
Como resultado desta organização livre e consciente do trabalho, a própria esfera da distribuição será ao mesmo tempo muito mais complexa e simples. Complexa porque os indivíduos agora não mais terão as suas necessidades padronizadas pelos processos alienantes do capitalismo — pela propaganda, para ficarmos apenas no exemplo mais gritante —; mais complexa porque uma humanidade mais livre produzirá demandas muito mais diferenciadas em cada local do planeta. E ainda mais complexa porque a produção de novas necessidades (o "primeiro ato histórico dos homens", em A ideologia alemã) ocorrerá em escala muito mais ampla e intensa quando a humanidade não encontrar no capital seu limite histórico.
Todavia, esta distribuição muito mais complexa será, também, muito mais simples. Não mais haverá necessidade de qualquer forma de controle do que cada indivíduo retirará da riqueza comum e, por outro lado, como o produto é agora apenas valor de uso e não traz com ele nenhum poder de domínio sobre os outros indivíduos, não terá o menor sentido as pessoas pegarem mais do que necessitam. Qual a utilidade de se ter 200 calças no guarda-roupa se elas não mais servem como valor para a compra de força de trabalho? A distribuição será o complexo processo de distribuir espacialmente o produzido para atender às necessidades de cada indivíduo e, não mais um processo de controle dos indivíduos enquanto tais.
Em uma sociedade comunista, por fim, não mais terá sentido a separação da humanidade em países. Esta forma de controle social e de regulamentação da circulação de capital será absolutamente anacrônica. A humanidade terá as peculiaridades históricas dos povos que a compõem desenvolvidas pelo rico processo de intercâmbio em um mundo que não conhece as barreiras artificiais chamadas fronteiras.
Não vamos abordar, aqui, a questão que é certamente a mais urgente: como fazer-se a transição da sociedade capitalista à comunista. Há uma lição da história do século XX que não poderá ser de modo algum esquecida: todas as tentativas de controle do capital através da posse do aparelho estatal, isto é, pela mediação da política, fracassaram rotundamente. Tanto na vertente soviética quanto na vertente socialdemocrata, os exemplos demonstram o acerto da previsão marxiana segundo a qual o capital pode ser destruído, controlado jamais. E a destruição do capital é, nem mais nem menos, a destruição da mercadoria, portanto do dinheiro, do poder do homem sobre o homem. Este é o único conteúdo possível da única ruptura viável com o modo de produção capitalista: a revolução comunista.
O que nos importa, para concluirmos, é que a proposição da sociedade comunista por Marx está articulada a uma concepção ontológica muito precisa.
1) Em primeiro lugar, a absoluta historicidade do ser em geral. Não há nada, rigorosamente nada, que não seja um processo. Nada há no universo que não seja processual. Se é um processo, significa que é uma sequência de transformações que conduzem de um estado a outro, de uma situação a outra, de um ente a outro, conforme o caso. Se tudo é processual, a essência, aqueles elementos de continuidade que particularizam cada processo enquanto tal, é também rigorosamente histórica.
2) Se a essência é histórica, ela é parte movida e movente da história. Significa que a essência de cada ente é parte da história, ela surge e desaparece no curso da própria história do ente do qual é essência. Para a reprodução do mundo dos homens, esta tese ontológica rigorosamente universal se particulariza pela afirmação que a essência humana é o conjunto das relações sociais. Ela não precede a história dos homens, nem ocupa o lugar dos homens na determinação da história humana: ela é resultante da síntese em totalidade dos atos dos indivíduos concretamente determinados pela história. Esta síntese, em um polo, é a personalidade de cada indivíduo; no outro polo, o gênero humano em sua dimensão a mais universal. Entre estes dois polos, todas as esferas e complexos particulares que compõem o mundo dos homens.
3) Se a essência humana é o conjunto das relações sociais, ela não pode representar o limite máximo do desenvolvimento da humanidade. Se a humanidade produz novas relações sociais — mais ainda, se é capaz de passar de uma sociabilidade a outra conforme transita de um modo de produção a outro — a essência humana também passa por uma transformação semelhante. A humanidade, portanto, é o único limite para o seu próprio desenvolvimento; as barreiras naturais poderão ser afastadas indefinidamente sem jamais desaparecem, certamente.
4) Isto significa uma nova e radical concepção da história dos homens, do papel dos indivíduos nesta história, da determinação da produção material sobre as outras esferas sociais, para ficarmos apenas com alguns dos tópicos mais importantes, que Marx não poderia desenvolver de nenhuma das concepções de mundo que conheceu.
Tal concepção de mundo não poderia ser retirada dos gregos, pois foram eles que, milhares de anos atrás, fundaram a concepção que associava essência e eternidade. A concepção a-histórica da essência já está presente, com todas as letras, em Parmênides.
Dos pensadores medievais, muito menos. Além de terem identificado essência à eternidade, converteram esta essência eterna no Deus demiurgo de todo o universo. Os homens, pela sua essência de criaturas, sofreriam mais do que fariam a história.
Dos pensadores modernos, tal concepção absolutamente histórica não poderia sair. Para eles, ser racional e ser proprietário privado eram determinações essenciais dos próprios homens. Mais ainda, a racionalidade essencial dos homens era a que reconhecia a racionalidade da propriedade privada. Ser humano era ser proprietário privado e racional. A sociedade mais desenvolvida possibilitaria que esta essência humana se manifestasse livremente, sem obstáculos, mas não seria capaz de alterar sequer um átomo desta essência porque, tal sociedade mais desenvolvida seria, ela própria, resultante do movimento desta mesma essência. De Locke a Rousseau e, mutatis mutandis, Hegel, estão todos neste mesmo patamar.
Não resta, portanto, a Marx, senão elaborar uma nova, radicalmente nova, concepção de mundo. Única e original. A superação do capitalismo, a forma mais desenvolvida possível da sociedade de classes, requer a superação ideológica de todas as concepções de mundo que tais sociedades foram capazes de produzir. Nisto está em grande parte a contribuição de Marx para a humanidade: uma teoria social que é, ao mesmo tempo, uma concepção filosófica única e uma proposta rigorosamente universal de emancipação da humanidade.
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Notas:
[1] Karl Marx, O capital, tomo I, vol II, São Paulo, Abril Cultural, 1985, p.8-10.
[2] “O Estado e a organização da sociedade não são, do ponto de vista político, duas coisas diferentes. O Estado é o ordenamento da sociedade.” Karl Marx, “Glosas críticas”, Revista Práxis, Belo Horizonte, Ed. Joaquim de Oliveira, n. 5, 1995. Esta edição é precedida de um rigoroso comentário por Ivo Tonet.
[3] Conferir Jeffrey Mandrick. The end of affluence. New York, Randon House, 1995.
[4] István Mészáros, Para além do capital. São Paulo, Boitempo/Unicamp, 2002, em especial o capítulo 16.
[5] Friedrich Engels, Anti-Dühring. Apud, Vladimir Lênin, O estado e a revolução. São Paulo, Hucitec, 1978, pg. 21. Este texto de Lênin, apesar de sua idade, é de uma atualidade impressionante. 7 István Mészáros, op. cit., pp. 934 e ss.
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