sexta-feira, 25 de abril de 2014

Sobre os “colaboradores”

                                               
por Paulo Ayres

As palavras carregam pesos enormes. E os termos podem ser maculados ou eufemizados.

Alguns destes termos são rearranjados de acordo com o desenvolvimento histórico e podem ser absolvidos ou condenados segundo uma conveniência ideológica. Pensemos apenas em como o adjetivo “totalitário” saiu de uma conotação positiva para entrar na Guerra Fria como o demônio do “totalitarismo” a ser combatido na figura da URSS; acompanhada da expressão “mundo livre” forjada no escudo liberal. Ou fiquemos apenas com um exemplo clássico dentro da tradição marxista: é preciso admitir que há um mínimo de desconforto com a expressão Ditadura do Proletariado – visto o sentido limitado-negativo que a palavra ditadura recebeu historicamente no senso comum e teoria liberal, como antítese de democracia (como se ditadura e democracia fossem excludentes). Dentro do mundinho intelectual-militante”, a categoria é perfeitamente sustentável, pois o seu significado é fácil de ser absorvido, mas como tratar isso com as massas populares? Dividindo a terminologia em dois tipos: os “esclarecidos” e a “massa leiga? (No XV Congresso do PCB, até foi sugerido Ditadura Democrática do Proletariado, mas, enfim, não parece surtir outro efeito...).

Existe, de fato, uma disputa por palavras e expressões para servir de arsenal. Mas essa batalha das ideias no mundo da palavras não se trata somente de aspectos ligados às trincheiras macroscópicas e combativas, abordadas por Domenico Losurdo em A linguagem do império: léxico da ideologia estadunidense, ela está também em como a ideologia liberal procura administrar a vida cotidiana para que ela soe menos contraditória possível (no sentido antagônico) nas suas relações de funcionamento. O famoso lema legislativo da era burguesa aparece como um mantra: todo mundo é igual perante a lei. Somos todos proprietários privados ou, em outras palavras, guardiães de mercadorias (independente se sua propriedade é uma rede de postos de gasolina ou apenas sua força de trabalho).

Proletariado seria coisa do passado (não só em termos semânticos, mas alguns defendem isso literalmente...). Deste modo, as relações entre trabalhadores e o patronato são trocas voluntárias e justas (não é assim que reza a lenda?). Entretanto, por mais que o sistema estabelecido sue a camisa diariamente para nos vender a imagem de um mundo conciliável e harmonioso (as mazelas e barbáries, neste ponto de vista, teriam origem em outras explicações fora da estrutura econômica do status quo), um certo desconforto é inevitável dentro das relações trabalhistas: quem é que não se sente, em algum grau, usado dentro do seu posto de trabalho?

Se o operário nunca será chamado de proletário por nenhum Departamento Pessoal ou de RH (Recursos Humanos), de uns tempos para cá, até empregado” passou a ser evitado. Os termos empregado/empregador ainda estão aí, mas o cuidado para não abusar da palavra empregado, seria algo que só provocaria um sorriso e um balançar negativo de cabeça, se não tivesse as suas consequências ideológicas. De alguma forma, a palavra empregado incorporou algum ranço inferiorizado que pode remeter até ao mais simples dos trabalhadores que há claramente uma relação de dominação aí (muitos até sentem alguma exploração - lembrando que nem toda exploração se dá mediante métodos opressivos). Só para constar, uma das proezas da nossa era de cultura pós-modernista é a mágica de transformar a empregada doméstica em secretária do lar. Pelo menos, em alguns lares houve essa mobilidade social.

Há medidas que as fábricas, empresas etc. recorreram para contornar esse embrião potencial ou manifesto de insatisfação. A linguagem é um poderoso instrumento. Já existia o velho termo funcionário, mas só ele, ao que parece, não daria conta. O dicionário lhes ofereceu colaborador e eles viram aí uma tábua de salvação terminológica. Que mundo estranho é este nosso. De repente, em pleno ápice da sociedade de classes (época em que a formação social está sobrecarregada em suas características mais egoístas, mesquinhas e concorrenciais), o conjunto de trabalhadores assalariados se transformou em colaboradores – ou algum termo parecido. Resumo: o que querem dizer é que entre capital e trabalho não há uma contradição, mas sim uma colaboração (!).

Na esfera da produção, em especial os setores fabris, esta é uma palavra bem utilizada para tratar os empregados operários. É colaborador pra cá, colaborador pra lá. Ora, mas afinal, com o que a classe operária está colaborando tanto assim? Se entre a humanidade e o capital não há uma relação de identidade, mas uma relação de alienação, os operários (no caso) estão colaborando, conscientemente ou não, para o lucro da burguesia, para a sustentação do sistema e para os processos alienantes (que é um estranhamento do ser social com o seu objeto de trabalho, com os outros indivíduos sociais e consigo mesmo). Colaboram também, voluntariamente ou não, para a perca da humanidade (quanto mais riqueza um trabalhador produz, mais pobre ele se torna; tanto no sentido de riqueza material-tangível, quanto de riqueza espiritual). Colaboram para a manutenção do abismo social que há no nosso mundo. De fato, os operários (e outros assalariados que recebem apelidos carinhosos" assim) estão colaborando com apenas uma coisa: a ordem (manter as coisas como estão). Porque, de resto, não se trata de meros colaboradores, mas sim dos elementos essenciais de reprodução da sociedade (e entre os assalariados, os operários ocupam um papel fundamental). Se e quando esta colaboração deixar de acontecer e superarmos esta ordem social (nas palavras poéticas de Mauro Iasi, quando os trabalhadores perderem a paciência), aí sim estaremos livres desta função subserviente e auxiliadora da ordem. Até lá só resta duas expressões para usar:

Colaborador é o caralho!

“Colaboradores de todo o mundo, uni-vos!
= = =

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