terça-feira, 4 de março de 2025

Poemas sobre a classe operária: Operário de Ponta Grossa

Operário de Ponta Grossa
Paulo Ayres

A partida nem começou de fato
No campeonato paranaense
a temporada se alonga

Um time com um nome tão belo
Sem o troféu amarelo de afeto,
um fantasma alvinegro

Entre as bolas, em cada costura
Linha de montagem em cada postura
É um jogo aberto, uma estrutura
Dura até os acréscimos

De Matinhos até Campo Largo
É amargo o veneno de Cascavel
E o céu em Curitiba

Em Palmas o jogo sempre esfria
Tem dia que a obra parece sólida
O impedimento vem da tela
= = =

domingo, 2 de março de 2025

Poemas sobre a classe operária: Blocos Concretos e Festivos


 
Blocos Concretos e Festivos
Paulo Ayres

Por trás de cada fantasia
Preenchendo cada fotografia
Vestuário do trabalho primário

Cada estatueta foi moldada
Adereço festivo não vem do nada
Paisagens da geografia humana

Entre vestidos de gala
E entre salas secretas
Entretenimento feito pela mão,
Entretanto, mãos operárias
Entrelaçadas com a beleza
evitam o entristecimento

Ainda estou aqui
Vendo o palco da Sapucaí
E pinguins em Los Angeles

Ainda espero a subida
E se a arte imita a vida
Nesse calor do cão,
a premiação é uma incógnita

Em cada bloco há beleza
Mas a estrela acesa está no bastidor
Mesmo com o ultraje a rigor,
Pacola escreve história
= = =

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Poemas sobre a classe operária: Um Morto no Trabalho Material Produtivo



Um Morto no Trabalho Material Produtivo
Paulo Ayres

A noite é uma criança
A madrugada, um velho cansado
Deixando de lado o mistério
É um caso sério a solidão

Operário no banheiro
É o primeiro cadáver sem cheiro
Trabalho morto de um homem torto
A máquina continua a produção

Ele está preso numa tela
Valor da vela de sétimo dia
Na monotonia da hora extra
Ninguém estende a mão

Tanta vida do outro lado
Risos distantes, gozando
Quando acorda pela tarde
O velho arde em recordação

E o vampiro à luz do dia
Nem se via na cadeira de rodas
Mas a roda viva é um vai-e-vem
Bancário na circulação
= = =

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Economia Política: da origem à crítica marxiana

por José Paulo Netto e Marcelo Braz

No estudo introdutório de qualquer corpo teórico voltado para a explicação e a compreensão da vida social — como é a Economia Política —, uma breve referência à sua história e a controvérsias que atravessam a sua evolução é indispensável.

Nas teorias que se voltam para a vida social, muito mais que naquelas que têm por objeto a análise das realidades da natureza, as controvérsias extrapolam as diferenças relativas a métodos, hipóteses e procedimentos de pesquisa; além de divergências nesses domínios, nas teorias e ciências sociais as polêmicas e mesmo as oposições frontais devem-se ao fato de elas lidarem com interesses muito determinados de classes e grupos sociais. Nessas teorias e ciências, nunca existem formulações neutras, assépticas ou desinteressadas — é o que reconhecem os pensadores mais qualificados: em meados do século passado, o economista sueco Gunnar Myrdal (1898-1987), Prêmio Nobel de Economia/1974, observava que “uma 'ciência social desinteressada' constitui [...] um puro contrassenso. Tal ciência jamais existiu e jamais existirá” (Myrdal, 1965: 104); e, cem anos antes, Marx já aludira com ironia ao peso dos interesses que constrangem a teoria de que nos ocupamos:

A natureza peculiar do material [que a Economia Política] aborda chama ao campo de batalha as paixões mais violentas, mesquinhas e odiosas do coração humano, as fúrias do interesse privado. A Igreja Anglicana da Inglaterra, por exemplo, perdoaria antes o ataque a 38 de seus 39 artigos de fé do que 1/39 de suas rendas monetárias. (Marx, 1983, I, I: 1983).

A Economia Política aborda questões ligadas diretamente a interesses materiais (econômicos e sociais) e, em face deles, não há nem pode haver “neutralidade”: suas teses e conclusões estão sempre conectadas a interesses de grupos e classes sociais. É por isso que, nesta Introdução, situando historicamente e de modo rápido a Economia Política, vamos também explicitar a perspectiva teórico-política que orienta a argumentação que sustentamos neste livro.
 
A Economia Política clássica
 
A expressão Economia Política, que tem origem no grego politeia e oikonomika, aparece, pela primeira vez, em 1615, quando Antoine Montchrétien (1575-1621) publica a obra Traité de L'Économie Politique [Tratado de Economia Política]. E embora surja em textos de François Quesnay (1694-1774), James Steuart (1712-1780) e Adam Smith (1723-1790), é apenas nos primeiros vinte anos do século XIX que passa a designar um determinado corpo teórico. Mas isso não significa que a Economia Política só se constituiu e sistematizou como campo teórico na entrada do século XIX — significa apenas que nesses anos ela passou a ser reconhecida como tal.

Com efeito, ao longo dos séculos XCVII e XVIII, desenvolveu-se e acumulou-se o estoque de conhecimentos que haveria de estruturar a Economia Política, resultante da contribuição, nesse decurso temporal, de um largo rol de pensadores, dentro os quais caberia lembrar William Petty (1623-1687), na Inglaterra, e Pierre de Boisguillebert (1646-1714), na França. No entanto, o que se pode denominar de período clássico da Economia Política (ou, ainda, Economia Política clássica) vai de meados do século XVIII aos inícios do século XIX; mais precisamente, a Economia Política clássica “começa na Inglaterra com Petty, e na França, com Boisguillebert” e “termina com [David] Ricardo [1772-1823] na Inglaterra e [Jean-Charles-Leonard Sismonde de] Sismondi [1773-1842] na França” (Marx, 1982: 47).[1]

Nos maiores representantes da Economia Política clássica, Smith e Ricardo, a despeito das diferenças entres suas concepções teóricas[2], encontram-se nitidamente duas características centrais da teoria que vinha se elaborando há quase duzentos anos.

A primeira delas refere-se à natureza mesma dessa teoria: não se tratava de uma disciplina particular, especializada, que procurava “recortar” da realidade social um “objeto” específico (o “econômico”) e analisá-lo de autônoma. Para os dois autores mencionados, como para vários daqueles que os precederam, centrando a sua atenção nas questões relativas ao trabalho, ao valor e ao dinheiro, à Economia Política interessava compreender o conjunto das relações sociais que estava surgindo na crise do Antigo Regime[3] — e naquelas questões “se explicitavam, de forma irrecusável, as transformações em curso na sociedade, a partir da generalização das relações mercantis e de sua extensão ao mundo do trabalho” (Teixeira, 2000: 100). Os clássicos da Economia Política não desejavam, com seus estudos, constituir uma disciplina científica entre outras: almejavam compreender o modo de funcionamento da sociedade que estava nascendo das entranhas do mundo feudal; por isso, nas suas mãos, a Economia Política se erguia como fundante de uma teoria social, um elenco articulado de ideias que buscava oferecer uma visão do conjunto da vida social. E mais: os clássicos não se colocavam como “cientistas puros”, mas tinham claros objetivos de intervenção política e social[4].

A segunda característica da Economia Política clássica relaciona-se ao modo como seus autores seus autores mais significativos trataram as principais categorias e instituições econômicas (dinheiro, capital, lucro, salário, mercado, propriedade privada etc.): eles entenderam como categorias e instituições naturais que, uma vez descobertas pela razão humana e instauradas na vida social, permaneceriam eternas e invariáveis na sua estrutura fundamental. Esse entendimento, os clássicos deviam-no à inspiração das concepções próprias do jusnaturalismo moderno, extremamente  influente na Europa Ocidental dos séculos XVII e XVIII e que marcou vigorosamente a teoria política liberal (ou o liberalismo clássico) cujo grande representante foi o inglês John Locke (1632-1704).

Essa característica, assim como a anterior, é indicativa do compromisso sociopolítico da Economia Política clássica — sabe-se que o liberalismo clássico constituiu uma arma ideológica na luta da burguesia contra o Estado absolutista e contra as instituições do Antigo Regime. Nos seus teóricos mais importantes (e, de novo, deve-se lembrar aqui Smith e Ricardo), ela condensou os interesses da burguesia revolucionária que se confrontava com os beneficiários da feudalidade (a nobreza fundiária e a igreja). Naqueles teóricos, as influências jusnaturalistas e liberais não são um acaso, mas sinalizam que suas realizações intelectuais inserem-se no quadro maior da Ilustração que, como é notório, configura um importante capítulo no processo pelo qual a burguesia avança para a construção do seu domínio de classe, que assinalou, em face da feudalidade, um gigantesco progresso histórico. Em resumidas contas, a Economia Política clássica expressou o ideário da burguesia no período em que esta classe estava na vanguarda das lutas sociais, conduzindo o processo revolucionário que destruiu o Antigo Regime — e não foi por outra razão, aliás, que o filósofo húngaro Georg Lukács (1885-1971) considerou-a a “maior e mais típica ciência nova da sociedade burguesa”.

Porém, esse claro compromisso da Economia Política clássica com o programa da Revolução Burguesa não converteu os seus grandes representantes, como os citados Smith e Ricardo, em defensores cegos e acríticos da nova ordem social que surgia. Na própria medida em que a Revolução Burguesa, à época, expressava os anseios emancipadores da humanidade, os clássicos dispunham de uma amplidão de horizontes que lhes permitia elaborar com profunda objetividade a problemática posta pelo surgimento da nova sociedade. No seu exemplo, pois, constata-se que a objetividade, em matéria de teoria social, não é o mesmo que “neutralidade”: precisamente por não serem “neutros”, defendiam uma ordem social mais livre e avançada que a da feudalidade — por isso, os clássicos puderam enfrentar sem constrangimentos as novas questões econômico-sociais.
 
A crise da Economia Política clássica

Entre os anos vinte e quarenta do século XIX — ou, com mais exatidão, entre 1825/1830 e 1848[5] — desenha-se a crise e a dissolução da Economia Política clássica. Essa crise insere-se num contexto bem determinado: nessas décadas, altera-se profundamente a relação da burguesia com a cultura ilustrada de que se valera no seu período revolucionário, cultura que configura, no plano das ideias, o chamado Programa da Modernidade.

A cultura ilustrada condensa um projeto de emancipação humana que foi conduzido pela burguesia revolucionária, resumido na célebre consigna liberdade, igualdade, fraternidade. Entretanto, a emancipação possível sob o regime burguês, que se consolida nos principais países da Europa Ocidental na primeira metade do século XIX, não é emancipação humana, mas somente emancipação política. Com efeito, o regime burguês, emancipou os homens das relações de dependência pessoal, vigentes na feudalidade; mas a liberdade política, ela mesma essencial, esbarrou sempre num limite absoluto, que é o próprio regime burguês: nele, a igualdade jurídica (todos são iguais perante a lei) nunca pode se traduzir em igualdade econômico-social — e, sem esta, a emancipação humana é impossível.

Portanto, a Revolução Burguesa, realizada, não conduziu ao prometido reino da liberdade: conduziu a uma ordem social sem dúvida muito mais livre que a anterior, mas que continha limites insuperáveis à emancipação da humanidade. Tais limites deviam-se ao fato de a revolução resultar numa nova dominação de classe — o domínio de classe da burguesia. E não é preciso dizer que a existência daqueles limites contradizia as promessas emancipadoras contidas na cultura ilustrada.

Instaurando o seu domínio de classe, a burguesia experimenta uma profunda mudança: renuncia aos seus ideais emancipadores e converte-se numa classe cujo interesse central é a conservação do regime que estabeleceu. Convertendo-se em classe conservadora, a burguesia cuida de neutralizar e/ou abandonar os conteúdos mais avançados da cultura ilustrada. Por seu turno, as classes e camadas sociais que, ao lado da burguesia revolucionária, articularam o bloco social do Terceiro Estado e agora viam-se objeto da dominação burguesa trataram de retomar aqueles conteúdos e adequá-los a seus interesses.

O movimento das classes sociais, naqueles anos — entre as décadas de vinte e quarenta do século XIX —, mostra inequivocamente que estava montado um novo cenário de confrontos: não mais entre burguesia (que, antes, liderara o Terceiro Estado) e a nobreza, mas entre a burguesia e segmentos trabalhadores, com destaque para o jovem proletariado. Se o movimento ludista inglês fora derrotado pouco antes, a ele substituiu-se o movimento cartista; e, no continente, avolumam-se as rebeliões e insurreições. Todo esse processo vai explodir nas revoluções de 1848; nas convulsões que abalam a Europa, um novo antagonismo social central está agora na ordem do dia — dois protagonistas começam a se enfrentar diretamente, a burguesia conservadora e o proletariado revolucionário.

No plano das ideias, 1848 assinala uma inflexão de significado histórico-universal: a burguesia abandona os principais valores da cultura ilustrada e ingressa no ciclo da sua decadência ideológica, caracterizado por sua incapacidade de classe para propor alternativas emancipadoras; a herança ilustrada passa às mãos do proletariado, que se situa, então, como sujeito revolucionário.

É nesse contexto que se compreende a crise da Economia Política clássica — sua crise é parte daquela inflexão, ocasionada pela conversão da burguesia em classe conservadora. Na medida em que expressa os ideais da burguesia revolucionária, a Economia Política clássica torna-se incompatível com os interesses da burguesia conservadora. Não é casual, portanto, que o pensamento burguês pós-1848 abandone as conquistas teóricas da Economia Política clássica — como também não é casual que tais conquistas se transformem num legado a ser assumido pelos pensadores vinculados ao proletariado.

Uma observação é suficiente para indicar a incompatibilidade da Economia Política clássica com os interesses da burguesia convertida em classe dominante e conservadora. Trata-se do modo como aquela enfrentou o problema da riqueza social (ou, mais exatamente, da criação de valores): para os clássicoso valor é produto do trabalho. Se essa concepção era útil à burguesia que se confrontava com o parasitismo da nobreza, deixou de sê-lo quando pensadores ligados ao proletariado começaram a extrair dela consequências socialistas. A teoria clássico do valor-trabalho, que fora uma arma da burguesia na crítica ao Antigo Regime, torna-se agora uma crítica ao regime burguês: nas mãos de pensadores vinculados ao proletariado, a teoria do valor-trabalho serve para investigar e demonstrar o caráter explorador do capital (representado pela burguesia) em face do trabalho (representado pelo proletariado). Os clássicos puderam desenvolver a teoria do valor-trabalho porque pesquisavam a vida social e econômica a partir da produção dos bens materiais, e não da sua distribuição; por isso, não só a teoria do valor-trabalho era incompatível com os interesses da burguesia conservadora; também o era a pesquisa da vida social fundada no estudo da produção econômica.

Compreende-se, assim, que após 1848, tanto a teoria do valor-trabalho quanto a investigação social e econômica a partir da análise da produção tenham sido abandonadas pelo pensamento burguês conservador; mais do que isso: foram consideradas “extracientíficas” pela Economia que, a partir da segunda metade do século XIX, substituiu — na cultura burguesa e especialmente nos meios acadêmicos — a Economia Política clássica. E se compreende também que ambas, a teoria do valor-trabalho e a análise social e econômica a partir da produção, tenham sido recuperadas pelos pensadores vinculados aos interesses das massas trabalhadoras.

Se, entre 1825/1830 e 1840, a Economia Política clássica experimenta a sua crise, na segunda metade do século a sua inteira dissolução está consumada — e isso se verifica até mesmo pelo desuso da expressão Economia Política. De fato, o que resulta da dissolução da Economia Política clássica são duas linhas de desenvolvimento teórico mutuamente excludentes: a investigação conduzida pelos pensadores ligados à ordem burguesa e a investigação realizada pelos intelectuais vinculados ao proletariado (com Karl Marx à frente). Nos dois casos, a antiga expressão é deslocada, no primeiro é abandonada e substituída pela nominação mais simples de Economia[6]; quanto a Marx, ele sempre se refere à sua pesquisa como crítica da Economia Política. E, em ambos os casos, a mudança de nomenclatura sinaliza alterações substantivas na concepção teórica, relativas aos valores, ao objeto, ao objetivo e a método de pesquisa.

A Economia vai se desenvolver no sentido de uma disciplina científica estritamente especializada, depurando-se de preocupações históricas, sociais e políticas. Tais preocupações serão postas à conta das outras ciências sociais que se articulam na sequência de 1848: a História, a Sociologia e a Teoria (ou Ciência) Política. No marco dessa “divisão intelectual do trabalho científico”, a Economia se especializa, institucionaliza-se como disciplina particular, específica, marcadamente técnica, que ganha estatuto científico-acadêmico. Adequada à ordem social da burguesia conservadora, torna-se basicamente instrumental e desenvolve um enorme arsenal técnico (valendo-se intensivamente de modelos matemáticos). Ela renuncia a qualquer pretensão de fornecer as bases para a compreensão do conjunto da vida social e, principalmente, deixa de lado procedimentos analíticos que partem da produção — analisa preferencialmente a superfície imediata da vida econômica (os fenômenos da circulação), privilegiando o estudo da distribuição dos bens produzidos entre os agentes econômicos e quando, excepcionalmente, atenta para a produção, aborda-a de modo a ladear a teoria do valor-trabalho.

Tal Economia, cujos esboços aparecem nos textos de autores que Marx qualificou como economistas vulgares[7], tem as suas primeiras formulações mais bem acabadas nas obras de William S. Jevons (1835-1882), Carl Menger (1840-1921) e Léon Walras (1834-1910). No curso de seu desenvolvimento, do fim do século XIX até os dias atuais, ela evoluiu no sentido de inúmeras especialidades e se diferenciou numa infinidade de “escolas”, lideradas em alguns casos, por intelectuais muito qualificados[8]. Perfeitamente integrada nos circuitos universitários, legitimou-se produzindo um corpo de profissionais credenciados para atuar como gestores nas empresas capitalistas e na administração pública.

A constituição dessa “ciência econômica” marca uma verdadeira ruptura em face da Economia Política clássica. Desta, ela herdou uma característica: a consideração das categorias econômicas próprias do regime burguês como realidades supra-históricas, eternas, que não devem ser objeto de transformação estrutural, senão ao preço da destruição da “ordem social”; assim, para essa “ciência econômica”, propriedade privada, capital, salário, lucro etc.. fazem parte, natural e necessariamente, de qualquer forma de organização social “normal”, “civilizada”, e devem sempre ser preservados. Mas a “ciência econômica” abandonou resolutamente as ideias que, formuladas pela Economia Política clássica, poderiam constituir elementos de crítica ao regime burguês (por exemplo, a teoria valor-trabalho, que foi substituída pela teoria da “utilidade marginal”). e. com esse procedimento de princípio, tornou-se um importante instrumento de administração, manipulação e legitimação da ordem comandada pela burguesia.
 
Não é a essa tradição teórica e política que se vincula a argumentação que desenvolveremos nas páginas subsequentes. A opção teórico-política que sustenta as ideias apresentadas neste livro remete à crítica da Economia Política elaborada por Marx.
 
A crítica da Economia Política
 
Karl Marx (1818-1883) aproximou-se das ideias revolucionárias que germinavam no movimento operário europeu pouco depois de haver concluído o seu curso de Filosofia (1841) — e, de 1844 até sua morte, todos os seus esforços foram dirigidos para contribuir na organização do proletariado para que este, rompendo com a dominação de classe da burguesia, realizasse a emancipação humana.

Para Marx, o êxito do protagonismo revolucionário do proletariado dependia, em larga medida, do conhecimento rigoroso da realidade social. Ele considerava que a ação revolucionária seria tanto mais eficaz quanto mais estivesse fundada não em concepções utópicas, mas numa teoria social que reproduzisse idealmente  (ou seja, no plano das ideias) o movimento real e objetivo da sociedade capitalista. Por isso, na perspectiva de Marx, a verdade e a objetividade do conhecimento teórico não são perturbadas ou prejudicadas pelos interesses de classe do proletariado; ao contrário, na medida em que o sucesso da ação revolucionária da classe operária depende do conhecimento verdadeiro da realidade social, o ponto de vista (ou a perspectiva) que se vincula ao interesses do proletariado é exatamente aquele que favorece a elaboração de uma teoria social que dá conta do efetivo movimento da sociedade.

É assim que, ligado à classe operária e sob o estímulo de Friedrich Engels (1820-1895), seu camarada de ideias e de lutas, Marx articulou, numa pesquisa que cobriu quase quarenta anos de trabalho intelectual, a teoria social que esclarece o surgimento, o processo de consolidação e desenvolvimento e as condições de crise da sociedade burguesa (capitalista). Das pesquisas de Marx resultou que a sociedade burguesa não é uma organização social “natural”, destinada a constituir o ponto final da evolução humana; resultou, antes, que é uma forma de organização social histórica, transitória, que contém no seu próprio interior contradições e tendências que possibilitam a sua superação, dando lugar a outro tipo de sociedade — precisamente a sociedade comunista, que também não marca o “fim da história”, mas apenas o ponto inicial de uma nova história, aquele a ser construída pela humanidade emancipada.

A teoria social de Marx foi elaborada a partir da cultura ilustrada a que já fizemos referência. Herdeiro intelectual da Ilustração. Marx beneficiou-se de seus principais frutos: a filosofia clássica alemã (notadamente o método dialético de Georg W. F. Hegel [1770-1831], a crítica social dos pensadores utópicos (especialmente Charles Fourier [1772-1837] e Robert Owen [1771-1858]) e a Economia Política clássica. Esta última, com efeito, está na base da teoria social de Marx: a sua crítica é um dos suportes da teoria social marxiana e não é por acaso que a principal obra de Marx, O capital, tenha por subtítulo a expressão crítica da economia política[9].

A crítica marxiana à Economia Política não significou a negação teórica dos clássicos; significou a sua superação, incorporando as suas conquistas, mostrando os seus limites e desconstruindo os seus equívocos. Antes de mais, Marx historicizou as categorias manejadas pelos clássicos, rompendo com a naturalização que as pressupunha como eternas; e pôde fazê-lo porque empregou na sua análise um método novo (o método crítico-dialético, conhecido como materialismo histórico). Realizando uma autêntica revolução teórica, Marx jogou toda a força da sua preparação científica, da sua cultura e das suas energias intelectuais numa pesquisa determinada: a análise das leis do movimento do capital; essa análise constitui a base para apreender a dinâmica da sociedade burguesa (capitalista), já que, nessas sociedade, o conjunto das relações sociais está subordinado ao comando do capital. Por isso, a própria obra marxiana só foi possível pela existência prévia da Economia Política clássica, uma vez que nesta se encontravam elementos que, submetidos a um tratamento historicizante e considerados sob nova perspectiva metodológica, sinalizavam o movimento e o comando do capital.

A Economia Política marxista

A critica da Economia Política clássica realizada por Marx possibilitou o conhecimento teórico da estrutura e da dinâmica econômicas da sociedade burguesa. A análise das leis de movimento do capital e as descobertas marxianas operadas na segunda metade do século XIX continuam válidas até hoje porquanto, corridos cento e cinquenta anos, a nossa sociedade permanece subordinada aos ditames do capital. Nesse lapso temporal, porém e compreensivelmente, a sociedade burguesa experimentou transformações muito profundas e emergiram fenômenos e processos que não foram estudados por Marx.

Ao longo do século XX, esses fenômenos e processos forma o alvo da pesquisa de analistas que, inspirados por Marx (especialmente incorporando o seu método crítico-dialético), procuraram esclarecê-los e integrá-los ao corpo teórico instaurado pelo autor d'O capital, construindo o que se pode designar como Economia Política marxista[10]. Nesse esforço para ampliar o estoque de conhecimentos, realizaram-se muitos avanços e novas descobertas se efetivaram — mas o campo da Economia Política marxista registra no seu interior inúmeras polêmicas, confrontos de ideias e de posições. Se há consenso sobre várias questões e problemas novos, também há discrepâncias e dissensos e, curiosamente, o debate envolve até mesmo o próprio objeto da Economia Política marxista.

Neste livro, partiremos da concepção geral que foi enunciada por Engels, segundo o qual a Economia Política, “no sentido mais amplo, é a ciência das leis que regem a produção e a troca dos meios materiais de subsistência na sociedade humana” (Engels, 1972: 158); contudo, essa concepção será considerada com a ênfase posta por Lênin: “o objeto da Economia Política não é simplesmente a 'produção', mas as relações sociais que existem entre os homens na produção, a estrutura social da produção” (Lênin, 1982: 29).

Desenvolvendo e sistematizando tal concepção, o professor Oskar Lange afirma que o objeto da Economia Política é a atividade econômica, ou seja, a produção e a distribuição dos bens com os quais os homens satisfazem as suas necessidades individuais ou coletivas; essa produção e distribuição constituem o processo econômico, e “o objetivo da Economia Política [...] é estudar as leis sociais que regulam o processo econômico”. Em Suma, “a Economia Política é a ciência das leis sociais da atividade econômica”(Lange, 1963: 19).

No presente texto, nosso objeto é a atividade econômica sobre a qual se estrutura a nossa sociedade, a sociedade burguesa. O leitor terá aqui, numa exposição panorâmica, uma síntese das análises desenvolvidas pela Economia Política marxista e, com ela, pretendemos oferecer elementos que julgamos fundamentais para a formação universitária de estudantes das ciências sociais e humanas e, especialmente, para a formação profissional dos assistentes sociais.

= = =
Notas:
[1] Ou, diversamente, nas palavras de Schumpeter (1968: 75): "[...] O nome dos economistas clássicos é geralmente dado aos economistas de primeira categoria, durante o período que vai da publicação da Riqueza das nações até a dos Princípios de J. S. Mill, em 1848". As referências são à obra, publicada em 1776, de Adam Smith, Inquérito sobre a natureza e as causas da riqueza das nações e a de John Stuart Mill (1806-1873), publicada em 1848, Princípios de Economia Política.
[2] Diferenças que se prendem, inclusive, às conjunturas históricas em que os pensadores trabalharam  diversamente de Smith, Ricardo elabora suas concepções quando a Revolução Industrial já se consolida na Inglaterra e surgem as primeiras grandes manifestações do protesto e da rebeldia operários (o movimento ludista).
[3] Por Antigo Regime (em francês, Ancien Régime) designa-se o conjunto de instituições da feudalidade ocidental.
[4] Aloísio Teixeira verificou que o compromisso dos clássicos com os problemas da ascensão burguesa era igualmente prático, dados os vínculos que estabeleciam entre a Economia Política e as medidas de política econômica: "O momento histórico em que o interesse por assuntos econômicos vai atraindo um número crescente de pensadores, não só provenientes do campo da filosofia política, mas também homens com formação voltada para problemas práticos, é exatamente o momento da formação dos Estados nacionais e da generalização da relações mercantis, tais processos [fizeram] com que atividades como as relacionadas com finanças e tesouraria adquirissem nova importância [...] O objetivo dos autores que escreveram sobre problemas econômicos, nos séculos XVII e XVIII, não era a teoria per se, muito menos a construção de modelos abstratos de análise, mas a discussão e a a formulação de políticas concretas envolvendo tributos, moeda, comércio, preços etc." (Teixeira, 2000: 93-94). Quanto à diversidade de pensadores que se dedicaram à Economia Política, tal como referida por Teixeira, recorde-se que, se Adam Smith foi professor de Filosofia Moral na Universidade de Glasgow, David Ricardo foi um bem-sucedido operador da Bolsa de Valores de Londres.
[5] Por volta de 1825, manifestou-se a primeira crise econômica do capitalismo; em 1848, explodiram revoluções democrático-populares na Europa Ocidental e Central.
[6] Esta substituição — Political Economy por Economics — foi consagrada com a publicação, em 1890, dos influentes Principles of Economics [Princípios de Economia], de Alfred Marshall (1842-1924).
[7] Para Marx, entre outros, eram típicos representantes da “economia vulgar” William Nassau Senior (1790-1864), Fredéric Bastiat (1801-1850) e John Stuart Mill (1806-1873).
[8] Entre os quais cabe destaque para o austríaco Joseph A. Schumpeter (1883-1950) e o inglês John M. Keynes (1883-1946).
[9] O capital. Crítica da economia política compreende três livros em seis volumes; só o primeiro livro foi publicado por Marx (1867); o segundo e o terceiro foram editados por Engels (respectivamente em 1885 e 1894); um quarto livro d'O capital, que compreende três volumes, foi publicado (por Karl Kautsky, entre 1905 e 1910) e editado no Brasil sob o título Teorias da mais-valia. Recorde-se que, em 1859, Marx já publicara uma obra intitulada Para a crítica da economia política.
[10] Nos limites desse livro é impossível consignar o conjunto desses autores; indiquemos apenas, quase aleatoriamente e tão-somente, os nomes de R. Luxemburgo (1871-1919), V. I. Lênin (1870-1924), N. I. Bukharin (1888-1938), R. Hilferding (1877-1941), E. Varga (1879-1964), O. Lange (1904-1965), M. Debb (1900-1976), P. A. Baran (1910-1964), P. M. Sweezy (1910-2004), U. Kozo (1897-1977), E. Mandel (1923-1995), I. Mészáros (1930-) e F. Chesnais (1934-).
= = =
NETTO, J. P.; BRAZ, Marcelo. Economia política: uma introdução crítica. São Paulo: Cortez, 2006, pp. 15-26.
= = =

terça-feira, 16 de julho de 2024

Poemas sobre a classe operária: Depósito de Matéria-Prima e Moagem

Depósito de Matéria-prima e Moagem
Paulo Ayres

Na floresta artificial no interior da fábrica
os frutos de plástico são encaixotados
e os galhos são as sobras

É um material excedente do trabalho excedente
na jornada excedente da labuta
há mercadorias excedentes

São galhos empilhados e armazenados lá no fundo
no fundo, quase nada se perde
quase tudo se transforma

Operários moídos geram produtos e fumaça
são mais sacos de partículas
sólidas, líquidas e gasosas
= = =