domingo, 31 de julho de 2016

Poemas sobre a classe operária: Uma Gota No Oceano


Uma gota no oceano
Paulo Ayres

Lá no auto, as labaredas de Guaraci
Aqui na proletária rede
Peixes morrendo de sede
Internautas morrendo de rir

Lá na poça, máquina a vapor
Sopa primordial de letrinhas
Indústria têxtil perdendo a linha
Evaporação sobe carregada de valor

Lá na nuvem, um pesado algodão
Colhido por operários
Suporta a era de aquário
Trincado e cheio, vaza a alienação

Lá no mar, Mamon em bancarrota
Chuvas movem moinhos
Na henosis, ninguém está sozinho
Uma gota no oceano, um oceano na gota
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sexta-feira, 29 de julho de 2016

Poemas sobre a classe operária: É Preciso Não Esquecer Nada II


É preciso não esquecer nada II
Paulo Ayres

O engenheiro lembra muito bem o amanhã
Esquecido, o operário deixou as chaves para trás
Assaz importantes, elas poderiam abrir várias portas
O misterioso segundo andar
Na sala do supermercado, estão comprando
Suando frio, a mercadoria preenche o formulário
Abrindo a próxima porta veria o vaso
Com atraso, a serviçária passando um fax
A reminiscência diria que há algo mais por aqui
Em outra sala, computadores a prova d' água
O constante download de suor
Pior é o escuro fim do corredor
Porta trancada, esquadro maçom esculpido na madeira
Empurrando com dificuldade, o humilde proletário entraria
Em pleno dia, o tio Pennybags cochila atrás da mesa
Certeza que uma dessas chaves abriria o seu cofre
Os seculares livros contábeis, na hora
Lá fora o céu azul visto numa gigantesca janela
Por ela seriam atirados os entraves da roda da história
Antes, o das rodas da cadeira
Dias de um futuro esquecido
Teria acontecido se o operário lembrasse das chaves
Deixadas em cima da máquina, na pressa de ir para casa
Rotina e personalidade rasas e carregadas de atos
É preciso não esquecer nada

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[0] "É Preciso Não Esquecer Nada I" é um poema de Cecília Meireles.
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quarta-feira, 27 de julho de 2016

Poemas sobre a classe operária: Os Ombros Suportam o Mundo II


Os ombros suportam o mundo II
Paulo Ayres

No livro da vida, mapas de lugares desconhecidos
A matéria-prima da Nigéria está na prateleira do Uruguai
O que sai, o que se exterioriza, viaja ao redor do mundo
O mais profundo gesto de impotência é ser um graveto
Somos o objeto de uma mistificação com código de barras
O operário é o titã que sustenta o mundo nos ombros
Brilham seus olhos resplandecentes no espaço sideral
O rude trabalho manual deixa o coração seco
Essa foi sua punição após a titanomaquia inglesa
Zeus está morto, lembrou o filósofo irracionalista
No comando está uma divindade criada manualmente
Sedenta e mesquinha, ela devora seus biscoitos antropomórficos
O peso de tantas classes, tantas riquezas, tanta desigualdade
Cada vez mais pesado, cada vez menos células no seu corpo
Chegou um tempo em que a vida e a morte se confundem
Ajoelha-se sobre uma perna o operário


* "Os Ombros Suportam o Mundo I" é um poema de Carlos Drummond de Andrade.

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Poemas sobre a classe operária: Até Logo, Companheiro II


Até logo, companheiro II
Paulo Ayres

O eu, ousado, vai desbravar o não-eu
Cimento é uma sopa unitária da diferença
A autoconsciência não anda no breu
A parede erguida sintetiza a presença

Quando cada tijolo superar o singular
Dezembro se transformará em janeiro
Não verei mais este eu-outro a assobiar
Mesmo assim direi, até logo, companheiro

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[0] "Até Logo, Companheiro I" é uma canção do Toquinho.
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sábado, 23 de julho de 2016

Poemas sobre a classe operária: Horizonte Distante II


Horizonte distante II
Paulo Ayres

A praia deserta está coberta de interrogação
Cronos e Kairós se encontram a cada segundo
O primeiro está nas ondas, o segundo medita no fundo
Profundo, o mar se estende até o jardim borgeano
Estou descalço, despido e descentralizado
Do outro lado das águas, o caminho para casa
Nem o Mestre dos Magos e nem Moisés podem ajudar
Os escrúpulos deste crepúsculo não estão escritos
Esperarei até a luz de amanhã cedo
Os olhos têm seus limites
O longínquo borra beleza e medo
Socialismo, barbárie ou autodestruição
Um deste barcos chegará primeiro
As três embarcações são feitas por mãos operárias
Mas apenas a primeira tem operários no timão
Depois de dias caminhando, uma pausa
Sento na areia, sinto um vento litorâneo
De olho no horizonte distante

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[0] "Horizonte Distante I" é uma canção do Los Hermanos.
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sexta-feira, 22 de julho de 2016

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Poemas sobre a classe operária: Hoje Eu Não Saio Não II


Hoje eu não saio não II
Paulo Ayres

Não tem furacão
Não tem obrigação
Não tem cristão que me faça sair de casa hoje
Pode me ligar
Pode esbravejar
Pode descontar do meu mísero salário de operário
Nada de linha de montagem
Nada de entrelinhas com chantagem
Nada de minha imagem hoje ser a do burro de carga

Dormirei até meio dia
Serei o Fireboy e a Watergirl ao mesmo tempo
Verei a cozinha de casa com aquela luz bege 
Amanhã eu lembro do jogo que sempre perco
Ou se vão me mandar para o banco de reserva
Só sei de uma coisa
Hoje eu não saio não

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[0] "Hoje Eu Não Saio Não I" é uma canção da Marisa Monte.
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quarta-feira, 20 de julho de 2016

terça-feira, 19 de julho de 2016

Poemas sobre a classe operária: Olho As Minhas Mãos II


Olho as minhas mãos II
Paulo Ayres

A água passa entre o dedos
Ainda é cedo, o sabonete é um peixe-palhaço
E as anêmonas-do-mar agradecem o mimo
Não tem arrimo para essas ferramentas
Não tem; para as juntas só tem um óleo
Olho as minhas mãos
Pensando bem, elas são estranhas sim,
Porque são minhas e minha vida é estranha
Como se fosse lasanha de berinjela
Alimentando essas duas plantas carnívoras.
Mãos enferrujadas e enrugadas
Alguns anéis de bandeide servem de adorno
Um forno: plástico quente, muito quente
Na minha frente, o espelho reflete o incêndio
Dispêndio de energia, desperdício de massa
Peças rebeldes me rebaixam ao rebarbar
É só tirar o estilete do bolso, sentar e dar início
Limpo o espelho embaçado
Não me vejo mais lá sentado
Num estelar de dedos, tenho que ir para lá

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[0] "Olhos As Minhas Mãos I" é um poema de Mário Quintana.
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segunda-feira, 18 de julho de 2016

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Poemas sobre a classe operária: O Fósforo III


O fósforo III
Paulo Ayres

Todos juntos confinados
Trabalho coletivo nos encosta
A união faz a força
A desunião faz o fogo
Apenas no sacrifício solitário
Se vender é se queimar
Potássio e parafina na cabeça
E na ponta de cada dedo
Onde está o excesso de fósforo?
Nas mãos, no suor, no sangue?
Nas unhas vermelhas da operária?
De jeito nenhum
Está na madeira e no metal
Na máquina que escarra palitos
A Gegenständlichkeit é o fósforo
Em contato com os dedos comprados
Combustão involuntária

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[0] "O Fósforo I" é um poema de Murilo Mendes (1972);"O Fósforo II" é um poema de Clarice Freire (2013).
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quarta-feira, 13 de julho de 2016

Poemas sobre a classe operária: Não Comerei da Alface a Verde Pétala II


Não comerei da alface a verde pétala II
Paulo Ayres

Semeado o estranhamento, vem a colheita
Os cabelos negros e verdes são crespos
A assalariada mão que balança o esterco
Deixa a salada livre de qualquer suspeita

A propósito, há uma alface no seu dente
Há um suor de agrotóxico na verdura
A água tira tudo, só não tira a amargura
E não tem tempero que torne diferente

O primeiro gourmet é o operário rural
A segunda-feira é madura e esverdeada
Ainda não plantaram mudas com sal

Todavia, a força de trabalho é irrigada
No período dos pentelhos, há alfaçal
Molho os pés e as raízes calejadas

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[0] "Não Comerei da Alface a Verde Pétala I" é um poema de Vinícius de Moraes (1962).
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terça-feira, 12 de julho de 2016

sábado, 9 de julho de 2016

Poemas sobre a classe operária: Ladeira da Preguiça II


Ladeira da preguiça II
Paulo Ayres

Descida íngreme nada ingênua
No fim da tarde, tu zombarás de mim
Esgotado, explorado, estranhado
Conduzirei a bicicleta pelos chifres
Escalarei a montanha com essas velhas botinas
Cada newton que agora se esfumaça, voltará na garupa
Esse vento no rosto não me seduz tanto
Acordei cedo, muito cedo, até Deus está dormindo
Lafargue é o santo que sabe que não sou pecador
O que o mundo me tira é muito mais do que ele me dá
Desafortunado, desanimado, descendo
Os pedais parados na manhã monótona
No entardecer, subirei mais leve, porém, menos humano
Sempre deixo algo de mim dentro da fábrica

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[0] "Ladeira da Preguiça I" é uma canção de Gilberto Gil.
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quinta-feira, 7 de julho de 2016

Poemas sobre a classe operária: Porrada II


Porrada II
Paulo Ayres

Soltaram os cães de guarda do Estado
Alerta laranja decretou um holandês
Trabalho vivo saiu de dentro do cercado
Se indignou com a chibatada dessa vez

O espírito da Comuna está aqui
Operários, para cima do Monsiuer Capital!
As ruas dos Manuscritos estão ali
Operários e a generidade do ser social!

Entre capital e trabalho, a terceira jornada
Porrada, porrada, porrada e porrada

Algo sobrevoa, infelizmente, camarada,
O fantasma da conciliação passada
Este espírito habermasiano sopra
No estádio, Paris respira Eurocopa
E no ringue, os dois espíritos
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quarta-feira, 6 de julho de 2016

domingo, 3 de julho de 2016

Poemas sobre a classe operária: Que Fragilidade II


Que fragilidade II
Paulo Ayres

Baby, cuidado ao abrir a caixa
A taxa do valor de uso é decrescente
O seu presente já não é tão novo assim
Há quinze minutos saí da loja da esquina,
Caixa de Skinner, reforço não incluído

Baby, esse lado não é para cima
O guarda-chuva já está escangalhado
Se o estoque parado é lixo pro burguês,
O nosso estoquinho movente também é
Ao cartão de crédito, acredite se quiser

Essa Pajero tem pistão de plástico
Esse suco gástrico banha o celular
No fim da esteira, está um operário,
Receptor com uma luva de beisebol
Produto no anzol, inverteram Hegel
A quantidade supera a qualidade

Murando Benito Muros, a noite liberal
Mirando os sapatinhos de cristal, meia-noite
Observando a obsolescência programada
Na estrada, o operário pisa fundo e decola
Antes que o carregamento deixe de ser top
Um par de All Star, um Macaulay Culkin


* "Que Fragilidade I" é uma canção do Pato Fu.
Tratamento: 04/09/2016.

sábado, 2 de julho de 2016

Poemas sobre a classe operária: Na Hora de Ir II


Na hora de ir II
Paulo Ayres

Seis da manhã a gravidade ainda é alta
Os olhos pesam, a cama não faz abdominal
Celular maldito, para te esmagar pouco falta
Vida sem sentido, sentido zona industrial

Sapatão sem cadarço
Cadáver sem descanso
O espelho do Don Ramón
Bolacha de sal com café filosófico
A louça heideggeriana fica lá marrom

A marmita morna murcha
Entra a claridade pós-iluminista
E a Mona Lisa sem sorrir
Giro a chave, sou da fábrica
Fecho a porta, está na hora de ir

* "Na hora de ir I" é uma canção da Nação Zumbi.